Um papo aberto sobre racismo e espiritismo

Por Eliana Haddad

Adolfo de Mendonça Júnior, 54 anos, é historiador e especialista em língua portuguesa. Natural de Franca, SP, tem atuado no movimento espírita como articulista e palestrante. É pesquisador e tem participado de encontros da Associação Brasileira de História Oral e da Liga de Pesquisadores do Espiritismo.

Trabalhador do Grupo Espírita Luz e Amor, Adolfo é membro do Núcleo de Pesquisadores Espíritas Agnelo Morato, grupo fundado em 2017 e que tem por finalidade aproximar estudiosos e interessados no desenvolvimento de pesquisas sobre a temática espírita em uma perspectiva acadêmica, tendo como referencial teórico a obra de Allan Kardec.

Com artigos publicados no Jornal de Estudos Espíritas (JEE), Adolfo tem se debruçado sobre a questão do racismo. Seu artigo "Allan Kardec, a ciência e o racismo" também foi traduzido para o francês e publicado na Revista Espírita do primeiro trimestre de 2019.

Convidado pelo Correio Fraterno, Adolfo concedeu-nos a seguinte entrevista:



Como analisa a pauta atual sobre racismo no Brasil e no mundo?

A agenda racista, tanto no Brasil quanto no mundo, é ampla, multifacetada e não tem sido totalmente discutida. Ela é fruto da escravidão e de uma narrativa racista 

que coloca os brancos como superiores, responsáveis ​​por trazer ‘progresso’ para suas colônias. Para se compreender melhor essa pauta, é necessário analisar a história e a formação estrutural das colônias europeias no século 16. Também é importante examinar as estruturas históricas dos países africanos, asiáticos, americanos e da Oceania, que ainda sofrem as consequências da exploração imposta pelos estados capitalistas no contexto do neocolonialismo no século 19. A suposta superioridade da raça branca foi usada para justificar a exploração e opressão dos povos coloniais, o que explica as raízes do desenvolvimento do racismo estrutural. A exploração econômica, os sistemas opressores e as práticas discriminatórias marcaram profundamente as estruturas sociais, políticas e econômicas das áreas colonizadas. Abordar essa história e a formação estrutural dos países colonizados é fundamental para entender as bases do racismo contemporâneo. 

No Brasil, o debate e a conscientização sobre o racismo aumentaram nos últimos anos, ganhando destaque em áreas como ativismo, academia e mídia. Movimentos sociais, coletivos, figuras públicas e independentes têm feito campanhas contra a discriminação racial.

O debate internacional sobre o racismo intensificou-se, impulsionado por movimentos como o Black Lives Matter (Vidas negras importam) nos EUA, que combatem a brutalidade policial e a desigualdade racial. Países estão formando suas forças policiais para lidar com o uso excessivo de força. Empresas e organizações também estão sendo convidadas a examinar suas práticas internas para promover a igualdade. 

E no espiritismo? Afinal, como os espíritas devem se posicionar com relação às acusações de que Kardec era racista?

O anacronismo é um conceito histórico importante que devemos considerar ao analisar as sociedades do passado. Aplicar conhecimentos e valores atuais a essas sociedades distorce nossa compreensão. Cada sociedade tem sua própria dinâmica e evolui com base em diferentes fatores. Antes de tirar conclusões ou fazer julgamentos, é necessário ter um conhecimento mais aprofundado da cultura e do ambiente em que vivem essas sociedades.

O racismo é o ódio e o desprezo dirigidos a alguém ou a um grupo étnico considerado inferior. É também uma ideologia da classe dominante, capitalista e predominantemente branca, que pode ser expressa por meio de linguagem ofensiva, insultos, agressões físicas, exclusão social, segregação, etc. O racismo não é apenas ódio pessoal, mas um sistema complexo de opressão e desigualdade que afeta muitos aspectos da vida. As manifestações de racismo podem ocorrer por meio de atitudes abertamente racistas, ou mais sutilmente, por meio de estereótipos, viés inconsciente e discriminação velada.

Portanto, seria injusto e desonesto dizer que Allan Kardec odeia certas pessoas ou grupos. Seria perder de vista a essência de seu ensinamento, pois seu trabalho está intrinsecamente ligado à prática do amor e da caridade, transcendendo qualquer forma de preconceito ou discriminação.

Como historiador, o que você pode nos esclarecer sobre os trechos considerados racistas nas obras de Kardec?

 Allan Kardec era um homem de seu tempo. Ele se utilizou do conceito de racialismo, ou racismo científico, que estava em voga e que apresenta a ideia de desenvolvimento das raças. Em meu entendimento, conforme o estado evolutivo, os espíritos simples e ignorantes tendem a reencarnar em corpos mais grosseiros ou menos grosseiros, enquanto os espíritos mais adiantados reencarnam em corpos supostamente superiores. É por isso que ele chegou a afirmar: "Um chinês, por exemplo, que progredisse suficientemente e não encontrasse mais em sua raça um meio correspondente ao grau que atingiu, encarnará entre um povo mais adiantado" (O que é o espiritismo, cap. III – “Solução de alguns problemas pela doutrina espírita”, item 143: O homem durante a vida terrena). Fazendo uma analogia com o perispírito, que é mais grosseiro ou menos grosseiro conforme o estado evolutivo do ser, assim Kardec preconizava o conceito de raça, uma categorização que pretende classificar o corpo humano, pautando-se em características físicas e hereditárias, como a cor da pele, a forma do ângulo facial, do crânio, dos lábios, do nariz, do queixo etc. Kardec se referia à raça ou ao corpo carnal e não ao espírito. Como historiador não uso anacronismos, ou seja, o conceito de raça preconizado por Kardec era cientificamente aceito em sua época e, se ele for considerado racista, todo pesquisador do século 19 também é racista.

Você é de opinião que a obra de Kardec necessite de revisão nesse sentido? 

O livro dos espíritos tem mais de 160 anos. Desde então, muita coisa mudou e a humanidade avançou científica, cultural, econômica, política e socialmente. Conceitos como "povos selvagens" e "civilizados" foram revistos pela academia. Devemos considerar os avanços da ciência e atualizar pontos que por demonstração já foram ultrapassados, continuando o trabalho de Kardec de desenvolvimento da ciência espírita.

Não podemos alterar o texto de um autor, mas podemos, por exemplo, acrescentar notas de rodapé e comentar as atualizações feitas pela ciência. Segundo Kardec, o espiritismo não se afastará da verdade e não tem nada a temer, desde que sua teoria continue sendo baseada na observação dos fatos. O espiritismo ainda tem muito a dizer sobre suas consequências, mas sua base é inquebrantável por estar fundamentada nos fatos, conforme comentários na Revista Espírita de fevereiro de 1865, sobre a perpetuidade do espiritismo.

Como lidar atualmente com teorias científicas do passado que são contestadas pela ciência contemporânea?

O espiritismo não tem nada a temer. A ciência se transforma com os avanços do progresso, estando em constante evolução e buscando validar e aprimorar suas teorias e descobertas por meio de métodos científicos rigorosos. É comum no meio científico que uma nova descoberta ou revelação precise ser validada pela comunidade científica antes de ser amplamente aceita. Nesse sentido, considerando que não cabe à comunidade científica contestar os princípios fundamentais do espiritismo, posto que o objeto de estudo da ciência é o princípio material e o objeto de estudo do espiritismo é o princípio espiritual, cabe a nós, espíritas, utilizar eventos e periódicos espíritas de natureza científica, como o Enlihpe e o JEE, para estabelecer um mainstream espírita e promover a ciência espírita, realizando estudos consistentes, testando e comprovando as novas revelações.

E preconceito no movimento espírita? Existe ou não? Qual sua visão sobre as minorias nas atividades espíritas?

Sim, há preconceito no movimento espírita, assim como há desigualdade social e econômica entre diferentes etnias. Há poucos pretos em cargos administrativos em centros espíritas ou em órgãos federativos e poucos palestrantes pretos espíritas. Tenho a sensação de ser visto como alguém que "conquistou" seu espaço por meritocracia, mas não acredito nessa ideia. Muitos amigos pretos não tiveram as mesmas oportunidades e deixaram de frequentar centros espíritas por causa dos gastos com eventos e palestras. É preciso avançar neste debate. Sou defensor do movimento de unificação e acredito que os dirigentes espíritas precisam considerar as desigualdades sociais ao organizar suas atividades. Apesar das restrições financeiras das federativas espíritas, é preciso incluir os excluídos e dar oportunidades aos que desejam conhecimento, mas não dispõem de recursos financeiros. Devemos envolver as minorias nas atividades espíritas. Elas enfrentam diferentes formas de discriminação e marginalização. É importante combater o racismo e o preconceito de todos os tipos, promover a igualdade, o respeito mútuo e valorizar a diversidade. Isso requer conscientização, educação, políticas antirracistas e engajamento em discussões construtivas para promover a dignidade humana e a justiça social.