Uma palavra do tradutor
Por Herminio C. Miranda
No conjunto das obras completas de J. W. Rochester, são relativamente poucas as editadas no Brasil. Como antigo admirador do excelente narrador espiritual, andava eu há muito – e continuo andando – à cata dos livros faltantes, conforme publicações feitas mais de uma vez junto a artigos na imprensa espírita.
Por sorte, acabei encontrando um companheiro de ideal, também admirador dos escritos do conhecido autor espiritual. Ao cabo de varias peripécias, que seria longo relatar aqui, eis que certa noite, creio que na última semana de novembro de 1981, o prezado confrade me põe nas mãos, em fotostática, um dos livros de Rochester em francês, ainda inédito no Brasil e que ele localizara em Paris.
Ficou acertado que eu faria uma leitura preliminar para ter uma idéia de seu conteúdo. Em seguida, decidiríamos como e quem fazer a tradução, mas era óbvio que o caro companheiro só faltava sugerir que eu a fizesse... Não assumi prontamente o compromisso, pois tradução não é tarefa que a gente jogue prontamente aos ombros como um saco de paina.
Dentro de uma semana, liguei para o amigo e lhe disse que não apenas havia lido a obra, mas que já tinha trinta ou quarenta páginas traduzidas... Ninguém resiste ao Rochester...
Traduzir é tarefa inglória, penso eu, além de arriscada, pois o mínimo que dizem do tradutor é que é, também, traidor, como nos assegura o batidíssimo ditado em língua italiana. Nesse campo, que não é de minha especialidade, já fiz um pouco de tudo – do inglês para o português, do português para o inglês, e do francês ou do espanhol para o português. Seja como for, naquela tarde de 28 de novembro, sentei-me à máquina e comecei a martelar a tradução das 540 páginas do original, transplantando-as para a nossa língua. As dificuldades não eram intransponíveis, a história me encantou e o livro... Enfim, o livro aí está.
Que tipo de dificuldades apresentava? Bem, primeiro, a linguagem. Repugnava-me botar toda aquela gente tratando-se mutuamente de vós ou de tu. Embora o tu seja mais aceitável no Brasil, só é mesmo usado com naturalidade no sul do País. E o vós... pelo amor de Deus! Não dá mais, creio que nem mesmo para preces. O que predomina por toda parte é o nosso brasileiríssimo você, que os portugueses inventaram em boa hora a partir do Vosmecê que, por sua vez, veio de Vossa Mercê. Ele substitui com perfeição o you do inglês, palavra simples, elegante, versátil e apropriada, tanto para falar com o Papa, a Rainha da Inglaterra ou com o colega de trabalho. Para o inglês e o americano, todo mundo é you e estamos conversados, ainda que, às vezes, apoiado nos adornos de praxe: Vossa Majestade, Sua Santidade, doutor, etc.
Por isso, adotei as expressões senhor, senhora, madame, senhorita para os tratamentos mais formais, em lugar do mumificado vós, que seria sumariamente rejeitado com um risinho de ironia. Em lugar do tu, usei o você.
Tudo isso, porém, com o maior respeito pelo texto, pois na época em que se desenrola a história o tratamento social era rigidamente formal e o tu só era usado na intimidade entre marido e mulher, por exemplo, de pais para filhos, de patrão para empregados. Fora disso, era o vós. Era preciso preservar essa atmosfera de formalismo para não poluir o clima da história com modernismos inoportunos e anacrônicos.
Sobre o livro em si, também vale a pena dizer algo. Rochester é um mestre consumado na arte de contar histórias. Ele sabe armar situações, criar e movimentar personagens, reproduzir com incrível perícia diálogos de impressionante realismo e naturalidade. Sabe, enfim, fascinar, manipular e arrastar o leitor até o último suspiro da última personagem. Seu poder criador e tão convincente que a gente se deixa envolver pela história e acaba acreditando que as personagens que ali se movimentam são gente mesmo, como nós, e não criaturas imaginárias. Como se sabe, ele costuma, de fato, produzir narrativas inspiradas em episódios e pessoas reais, mas não fosse ele o que hoje se chama um craque, os atos sairiam mofados e as personagens ruborizadas. Mesmo bordejando, às vezes, pela caricatura – Pfauenberg, por exemplo, ou Tarussoff – ele jamais deixa sua gente despenhar-se pelo abismo da farsa inverossímil. Embora eles se conservem um tanto caricatos, são sempre gente, pois, infelizmente, há gente caricata na vida...
A história se passa na Rússia Imperial, aí pelo último quartel do século dezenove, cerca de 40 anos antes da Revolução que implantou o regime comunista e fez da Rússia a União Soviética. O ambiente geográfico é a antiga capital do Império – São Petersburgo, posteriormente Petrogrado e hoje Leningrado. O ambiente social é o da alta roda de príncipes, condes e barões, movimentando-se numa sociedade corrupta e corruptora, sofisticada e imoral mesmo, a maior parte do tempo. É um livro um tanto amargo, à primeira vista, quando se pensa em todo aquele amplo painel de miséria moral, egoísmo, vaidade e cinismo. Pouco a pouco, no entanto, o leitor vai percebendo, nas entrelinhas, a razão de ser do quadro desolador que se arma para contar uma historia maior de fortaleza moral, de lealdade, de bom senso, de incorruptibilidade e de pureza, no meio de toda aquela decadência.
Rochester consegue narrar a sua historia, utilizando-se quase que exclusivamente do diálogo, com um mínimo de descrição. Ele não precisa explicar suas personagens, nem o que dizem e fazem. Cada cena tem seu lugar e finalidade, nenhuma frase ou palavra é desperdiçada ou fica perdida no texto.
O autor espiritual vai ao requinte dos detalhes na escolha dos nomes de suas figuras. Pfauenberg, a pavonear-se pela sociedade, ambicioso e fantasiado (de falso) médium, para melhor abrir certas portas, tem o nome certo; algo assim como montanha empavonada (Pfauenberg); o Príncipe Ugarine, um dos vilões, nos quais Rochester é, por assim dizer, um especialista, também traz nome apropriado à sua condição moral: Arsênio. De bela e inocente aparência, como o pozinho que lhe inspirou o nome, é um sujeito venenoso e envenenado. Tâmara, a heroína do livro, é um ser de excepcionais virtudes – ainda que bastante orgulhosa e um tantinho preconceituosa – que parece realmente sozinha e altaneira num deserto de decência, como uma tamareira a produzir frutos raros, de sabor indefinível e um pouco ácido ao paladar daquela gente. Seu marido, espírito de igual têmpera e de não menos excelentes virtudes, chama-se Magnus, isto é, grande.
Sem demonstrar que esta pregando moral, Rochester da o seu recado e obriga sua gente a pregá-la com o que faz e diz.
Por isso tudo, as canseiras da tradução acabaram amplamente recompensadas.
Rio de Janeiro, Janeiro,1982.