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[Livro] Educação para a morte

“Quem primeiro cuidou da psicologia da morte e da educação para a morte, em nosso tempo, foi Allan Kardec. Ele realizou uma pesquisa psicológica exemplar sobre o fenômeno da morte. Por anos seguidos, falou a respeito com os espíritos de mortos. E, considerando o sono como irmão ou primo da morte, pesquisou também os espíritos de pessoas vivas durante o sono. Isso porque, segundo verificara, os que dormem saem do corpo durante o sono. Alguns saem e não voltam: morrem. Chegou, com antecedência de mais de um século a esta conclusão, a que as ciências atuais também chegaram. Com a mesma tranquilidade de Sócrates, Victor Hugo concluiu: ‘Morrer não é morrer, mas apenas mudar-se’.

As religiões podiam ter prestado um grande serviço à humanidade se houvessem colocado o problema da morte de forma natural. Mas, nascidas da magia e amamentadas pela mitologia, só fizeram complicar as coisas. A mudança simples de que falou Victor Hugo transformou-se, nas mãos de clérigos e teólogos, numa passagem dantesca pela selva selvagia da Divina Comédia.

Nas civilizações agrárias e pastoris, graças ao contato permanente com os processos naturais, a morte era encarada sem complicações. Os rituais suntuosos, os cerimoniais e sacramentos surgiram com o desenvolvimento da civilização, no deslanche da imaginação criadora.

... Mas, surgiu, no seio das próprias ciências, a concepção do homem como espírito e o conceito da morte como simples descondicionamento do ser, envolvido e condicionado na forma humana carnal, de origem animal. Reestabelece-se também a ideia cristã da morte como libertação que reintegra o morto na sua dignidade humana, vivo e ativo.”

- Trecho da introdução do livro Educação para a morte.

Características

J. Herculano Pires
Editora: Correio Fraterno
Idioma: Português
Tamanho: 14X21 cm
Páginas: 208
ISBN-13: 978-85-98563-89-3

Degustação

Muito antes de Augusto Comte, os médicos haviam descoberto que os vivos dependiam sempre, e cada vez mais, da assistência e do governo dos mortos. De toda essa embrulhada resultou o pavor da morte entre os mortais. Ainda hoje os antropólogos podem constatar, entre os povos primitivos, a aceitação natural
da morte. Entre as tribos selvagens da África, da Austrália, da América e das regiões árticas, os velhos são mortos a pauladas ou fogem para o descampado a fim de serem devorados pelas feras. O lobo ou o urso que devora o velho e a velha expostos, voluntariamente, ao sacrifício será depois abatido pelos jovens caçadores que se alimentam da carne do animal reforçada pelos elementos vitais dos velhos sacrificados. É um processo generoso de troca, no qual os clãs e as tribos se revigoram.

O pavor maior da morte provém da ideia de solidão e escuridão. Mas os teólogos acharam que isso era pouco e oficializaram as lendas remotas do inferno, do purgatório e do limbo, a que não escapam nem mesmo as crianças mortas sem batismo. De tal maneira, aumentaram-se tanto os motivos do pavor da morte,
que ela chegou a significar desonra e vergonha. Para os judeus, a morte se tornou a própria impureza. Os túmulos e os cemitérios foram considerados impuros. Os cenotáfios, túmulos vazios construídos em honra aos profetas, mostram bem essa aversão à morte. Como podiam eles aceitar um messias que vinha da Galileia dos gentios, onde o palácio de Herodes fora construído sobre terra de cemitérios? Como aceitar esse messias que morreu na cruz, vencido pelos romanos impuros, que arrancara Lázaro da sepultura (já cheirando mal) e o fizera seu companheiro nas lides sagradas do messianismo?

Ainda em nossos dias, o respeito aos mortos está envolvido numa forma velada de repulsa e depreciação. A morte transforma o homem em cadáver, risca-o do número dos vivos, tira-lhe todas as possibilidades de ação e portanto de significação no meio humano. “O morto está morto”, dizem os materialistas e o populacho ignaro. O papa Paulo VI declarou, e a imprensa mundial divulgou em toda parte, que “existe uma vida após a morte, mas não sabemos como ela é”. Isso quer dizer que a própria Igreja nada mais sabe da morte, a não ser que morremos. A ideia cristã da morte, sustentada e defendida pelas diversas igrejas, é simplesmente aterradora. Os pecadores, ao morrer, se veem diante de um tribunal divino que os condena a suplícios eternos. Os santos e os beatos não escapam às condenações, não obstante a misericórdia de Deus, que não sabemos como pode ser misericordioso com tanta impiedade. As próprias crianças inocentes, que não tiveram tempo de pecar, vão para o limbo misterioso e sombrio pela simples falta do batismo. Os criminosos broncos, ignorantes e todo o grosso da espécie humana são atirados nas garras de satanás, um anjo decaído que só não encarna o mal porque não deve ter carne. Mas com dinheiro e a adoração interesseira
a Deus essas almas podem ser perdoadas, de maneira que só para os pobres não há salvação, mas para os ricos o céu se abre ao impacto dos tedéuns suntuosos, das missas cantadas e das gordas contribuições para a Igreja. Nunca se viu soberano mais
venal, e tribunal mais injusto. A depreciação da morte gerou o desabrido comércio dos traficantes do perdão e da indulgência divina. O vil dinheiro das roubalheiras e injustiças terrenas consegue furar a justiça divina, de maneira que o desprestígio dos
mortos chega ao máximo da vergonha. A felicidade eterna depende do recheio dos cofres deixados na Terra.

Diante de tudo isso, o conceito da morte se azinhavra nas mãos dos cambistas da simonia, esvazia-se na descrença total, transforma-se no conceito do nada, que Kant definiu como conceito vazio. O morto apodrece enterrado, perde a riqueza da
vida, vira pasto de vermes e sua misteriosa salvação depende das condições financeiras da família terrena. O morto é um fraco, um falido e um condenado, inteiramente dependente dos vivos na Terra.

O povo não compreende bem todo esse quadro de misérias em que os teólogos envolveram a morte, mas sente o nojo e o medo da morte, introjetados em sua consciência pela força dos poderes divinos que o ameaçam desde o berço ao túmulo e ao além-túmulo. Não é de admirar que os pais e as mães, os parentes dos mortos se apavorem e se desesperem diante do fato irremissível da morte.”