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Paz, caminho para a felicidade

Por Miriam Zillo*

Deixo-vos a paz. A minha paz vos dou, não como o mundo a dá. (João, 14:27)

 

A afirmação de Jesus sobre a paz é citada na Revista Espírita de fevereiro de 1863, na dissertação “Paz aos homens de boa vontade”, assinada pelo espírito de um antigo magistrado, que discorre sobre o papel da vontade para que a paz realmente se realize. “Paz, disse Cristo, aos homens de boa vontade! Não tivestes a paz porque não tivestes a boa vontade”, refere-se o espírito, identificado pelas iniciais F.D.

Não há dúvida de que muitas desavenças poderiam ser evitadas se nossas ações se baseassem na boa vontade para o diálogo e no pressuposto do respeito à vida humana. E isso representa a própria necessidade do aprendizado do amor, do perdão.

Vale citar como ilustração sobre a necessidade do estado interno de paz, a recomendação detalhada por Pedro em sua primeira epístola aos cristãos romanos. O apóstolo os orientava para que continuassem firmes diante dos sofrimentos e perseguições. “Está muito próximo o fim de todas as coisas; portanto, tende bom senso e vigiai em oração. Antes de tudo, exercei profundo amor fraternal uns para com os outros, porquanto o amor cobre uma multidão de pecados. Sede hospitaleiros uns para com os outros, sem vos queixar....”

Relações e conflitos

Tendo raiz etimológica latina, a paz (pax) é definida como um estado de calma ou tranquilidade, ausência de perturbações, agitação, violência ou guerra. Não basta, porém, o conceito de paz, mas como ela se instala e deve ser preservada em nós. Humanos, temos competências para fazer escolhas racionais e organizar as nossas relações de forma pacífica, exprimindo ternura ou carinho nos contatos interpessoais ou institucionais. As relações humanas, porém, nem sempre estão fundadas no bom senso, no equilíbrio, na harmonia, como advertira Pedro aos primeiros cristãos. Inseridos na ambiência da nossa própria condição espiritual poucas são as relações desenvolvidas com base no que é justo, muito mais atreladas à promoção particular de bem-estar egoísta e passageiro, deixando seus rastros de vingança, ganância, poder, dominação e desigualdade.

Ainda muitas vezes tomamos a justiça como um processo de vingança para o enfrentamento de uma mágoa, o que permite que o conflito se instaure como caminho para solucionar desavenças, que nada mais são do que consequências de ações irrefletidas e que fornecem uma visão distorcida do caminho para a paz. Por isso, a paz do mundo não é duradoura como a do Cristo.

A paz exige trabalho constante, um exercício de superação. Não seria, portanto, um fim a ser atingido, mas o processo, o caminho para a felicidade. É com boa vontade que esse caminho desarmônico (em pequena ou grande escala) pode ser mudado por decisão consciente, considerando-se já como ponto de partida que o outro deve ser tratado em condições de igualdade na sua desigualdade. A máxima de que se deve amar ao próximo como a si mesmo deve ser aplicada também quando se analisa o respeito. 

Três máximas filosóficas

No século 18, o filósofo Immanuel Kant elabora o ideal ético em três ordens fundamentais, sendo a primeira: "age de tal modo que a máxima de tua ação possa sempre valer como princípio universal de conduta"; a segunda: “age de tal forma que uses a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e ao mesmo tempo, como fim e nunca como meio”; e a terceira: “age de tal maneira que a tua vontade possa encarar a si mesma, ao mesmo tempo como um legislador universal”.

Essas três máximas parecem iguais, mas há nelas uma pequena diferença na interpretação: esses comandos a serem adotados, que Kant chama de imperativos categóricos, se referem a um dever moral, uma ordem interna que atinge a todos e não deve ser desobedecida. São decisões morais, baseadas na razão (universal) e que não estão vinculadas a nenhum tipo de interesse ou inclinação.

Uma ação só será moralmente correta se ela for exercida por uma reflexão que a livre de qualquer influência perniciosa, propiciando um resultado justo, harmonioso e pacífico, fundamentado na vivência e respeito com igualdade, fraternidade e liberdade para todos como lei universal.

Outro ponto interessante da filosofia kantiana e que se aplica a essa reflexão sobre a paz é que ela será conseguida quando o homem alcançar a sua “maioridade”, que é a coragem de fazer uso de seu próprio entendimento, porque poderá pensar por si mesmo, sem influências externas de má-fé, refletindo profundamente sobre suas ações e sendo responsável por elas. O oposto, a “menoridade”, é produzido pelo homem ao se deixar ser conduzido pelo outro, uma “condição medíocre”, segundo Kant, que o impede de tomar coragem para servir-se de si mesmo sem necessitar da ajuda de alheios. A menoridade afetaria todos os campos da vida: na política, na sociedade, no trabalho.

As causas que impedem o homem de agir na maioridade são representadas, conforme Kant, pelo comodismo, preguiça e covardia.

Isso também se aplica à visão do bom combate, da porta estreita, pois que não está acostumado a esse esforço constante, que ajuda o autoconhecimento para a solução de problemas e alívio das dores, corre o risco de estar sempre em conflito interno, como pode-se observar na carta de Paulo a Timóteo: “Combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé. Agora me está reservada a coroa da justiça, que o Senhor, justo juiz, me dará naquele dia; e não somente a mim, mas também a todos os que amam a sua vinda.”

 

Um olhar para a alteridade

A paz precisa ser construída para ser conquistada. Como bem destacou Gandhi, “não existe um caminho para a paz. A paz é o caminho!”. A paz como cuidado, fraternidade, é resultado do respeito à alteridade, como defende Emmanuel Lévinas (1906-1995), considerado um dos mais influentes pensadores éticos do século 20.

Lévinas chama a atenção para o fato de que o outro é aceito apenas se convertido e reduzido ao “eu“. Como se devesse se encaixar na ‘minha’ cultura, religião, ideologia, filosofia ou visão de mundo. Ou seja, aceito o outro se ele fala a mesma língua ou se pensa como eu. Se assim não for, o outro estará distante de mim, mesmo se for o meu vizinho ou familiar, visto como ninguém ou inexistente, e por isso pode sofrer violência ou ser eliminado sem prejuízo à consciência.

 A proposta de Lévinas se insere em uma nova relação entre o ‘eu’ e os iguais com a alteridade para que não haja exclusão e nem destruição, mas respeito e aceitação mútua, objetivando a vivência da ética com a finalidade de obter a Paz da humanidade.

 

Acolhimento às fraquezas

Na ética de Lévinas, a alteridade é o acolhimento ao outro em sua fraqueza e necessidade. Assim como para Lévinas, a ética é uma experiência com o sagrado (não necessariamente religiosa) que resulta em harmonia, equilíbrio, aceitação e paz na alma, também o espiritismo revela que as relações estão baseadas em causas espirituais, devendo-se respeitar os mais diferentes níveis evolutivos, onde a paz um dia há de reinar naturalmente como aprendizado de amor.

Quando a reflexão se abre mais profundamente sobre a paz como necessidade humana e a caridade se expressa nas diversas etapas desse exercício, percebe-se que paz nem sempre é marasmo como se pensa, mas algo que move as potencialidades do nosso ser como estímulo para dias melhores, que não surgirão como num passe de mágica, mas como resultado do empenho de cada um nós. Por isso, referiu-se Jesus a ela, dizendo: “Não vim trazer a paz, mas a espada”. É que toda ideia nova tem seus oponentes e contraditores. Assim como os ensinamentos que Jesus trouxe, que vieram solapar, retirar o homem de seu conforto, da preguiça, dos abusos para com os outros e, por isso, seus opositores lutaram ferrenhamente para destruí-lo.

A trilogia da serenidade

Muitas vezes, é preciso chacoalhar o vasilhame sujo, aparentemente limpo, para que as impurezas depositadas no fundo se façam visíveis para serem eliminadas. Há momentos de tranquilidade e agitação. A paz nem sempre é silenciosa, mas sempre dependerá dos homens de boa vontade, ou daqueles que se predisponham a buscá-la e estejam atentos a ela.

O filósofo e escritor Herculano Pires em sua tese de mestrado sobre o ser e a serenidade, ao buscar uma nova perspectiva, a interexistencial, para explicar as vivências humanas, defende que há mais serenidade no homem que defende com entusiasmo e calor os seus princípios do que no indivíduo falacioso que procura serenamente as suas evasivas. “É mais sereno o murro de uma verdade na mesa, do que o palavreado untuoso da mentira na boca de um santo de artifício”, afirma Herculano.

Em seus estudos sobre a serenidade ele chega à conclusão de que o segredo da serenidade está na sua própria espontaneidade. Para isso, Herculano faz um convite para que o homem na Terra consiga asserenar-se e viver melhor, evitando depressões e vários problemas físicos. Bastariam, segundo ele, três regras para conseguirmos maior tranquilidade:

  • Nunca te deixes abater

  • Procura a perfeição

  • Supera as circunstâncias

“Venha a nós o vosso reino”

No último capítulo de O evangelho segundo o espiritismo, Allan Kardec publicou uma coletânea de preces espíritas, uma seleção feita entre as que foram ditadas pelos espíritos em diferentes circunstâncias. Por conselho e com a assistência dos bons espíritos, foi acrescentado a cada frase do Pai Nosso um comentário que desenvolve seu sentido e mostra suas aplicações.

Sobre a frase “Venha a nós o vosso reino”, explica-se o que seria o tão apregoado reino de paz Terra. Vale conferir:

“Senhor, destes aos homens leis cheias de sabedoria e que fariam a sua felicidade, se as observassem. Com essas leis eles fariam reinar entre si, a paz e a justiça; ajudar-se-iam mutuamente, em vez de se prejudicarem, como fazem; o forte ampararia o fraco, em vez de esmagá-lo; evitariam os males que engendram os abusos e excessos de todos os gêneros. Todas as misérias daqui de baixo vêm da violação de vossas leis, porque não há uma só infração que não tenha suas consequências fatais.

Destes ao animal o instinto que lhe traça o limite do necessário, e ele a isso se conforma maquinalmente, mas ao homem, além desse instinto, destes a inteligência e a razão; também lhe destes a liberdade de observar ou infringir aquelas de vossas leis que lhe concernem pessoalmente, isto é, de escolher entre o bem e o mal, a fim de que ele tenha o mérito e a responsabilidade de suas ações.

Ninguém pode pretextar ignorância de vossas leis, porque, na vossa previdência paternal, quisestes que elas fossem gravadas na consciência de cada um, sem distinção de culto nem de nações. Aqueles que as violam é porque vos desconhecem.

Um dia virá em que, conforme a vossa promessa, todos as praticarão. Então a incredulidade terá desaparecido, e todos vos reconhecerão como Soberano Senhor de todas as coisas, e o reino de vossas leis será o vosso reino na Terra.

Dignai-vos, Senhor, apressar a sua vinda, dando aos homens a luz necessária para conduzi-los no caminho da verdade”.

*Graduada em Comunicação e Filosofia. Expositora de Filosofia Espírita do Núcleo Espírita de Filosofia, em São Paulo.