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O príncipe da paz

Por Herminio Miranda

Jesus, Maria e José (1507), pintura de Rafael, Museu do Prado, Espanha

Mesmo agora,  dois mil anos de distância do seu nascimento na Palestina, ainda há muita controvérsia a respeito da figura ímpar de Jesus e do seu legado doutrinário. 

As posições variam desde a deificação até o aviltamento mais grosseiro. De certa forma, é compreensível que a personalidade do Cristo tenha levantado tanta celeuma. De tal maneira esteve ele adiantado em relação ao seu tempo que ainda hoje não alcançamos toda a profundidade dos seus ensinamentos e toda a extraordinária força e limpidez do seu caráter. Podendo nascer entre os poderosos para pregar de cima para baixo a sua mensagem, decidiu, ao contrário, nascer e viver na pobreza para pregá-la entre os humildes. Numa época tumultuada pelas paixões políticas e religiosas, prosseguiu imperturbável e com dignidade inexcedível a espalhar a sua palavra redentora. Para demonstrar que a morte era um simples episódio, não recuou diante da mais rude e mesquinha forma de punição e, ainda mais, por crime que não cometera. Interessado em demonstrar o mecanismo de leis desconhecidas dos homens, realizou inúmeros fenômenos insólitos, prontamente classificados como milagres.

Esse espírito majestoso, que mudou o curso da História, nasceu no anonimato, viveu na pobreza e morreu na infâmia. A história oficial da época mal registra a sua passagem num ou noutro documento tido por muitos como suspeito. É que o impacto vigoroso da sua influência começa com a sua morte e cresce e se agiganta com o passar dos séculos. Seu vulto imenso é daqueles que a nossa pobre visão espiritual somente pode contemplar a distância: de perto, é grande demais.

A História, quando começou realmente a se interessar pela figura do Mestre, encontrou-a já mutilada e recoberta de lendas e de mitos. Até mesmo seu ensinamento continha deformações difíceis de eliminar. Em muitos casos, a imaginação dos historiadores supriu a falta de dados concretos e novas paixões se desataram em torno dele. Alguns para exaltá-lo mais do que ele próprio desejaria; outros, no extremo oposto, tentaram reduzi-lo a um ser mesquinho, igual a muitos, ou perturbado pelos desequilíbrios mentais catalogados pela ciência moderna; houve também quem procurasse demonstrar que ele nunca existiu, senão na imaginação de um povo que buscava a grandeza histórica a qualquer preço.

No século passado verificaram-se as primeiras tentativas sérias a que hoje se chama desmitificação da imagem do Cristo. Não é outro o sentido das obras mais famosas dessa escola: a de Strauss e a de Renan. Ambos procuram explicar o Mestre em termos humanos, o que, até certo ponto, se admite. Procuram aplicar os métodos modernos da historiografia,  algo de diferente em confronto com as antigas ‘vidas’ de Jesus, elaboradas numa atmosfera de misticismo exagerado. Uma preocupação, no entanto, lhes era constante: reduzir o impacto emocional dos chamados milagres, procurando retirar deles as características sobrenaturais que a teologia clássica lhes atribuíra. A tarefa de esclarecimento, porém, estava reservada ao espiritismo, que não apenas reinterpretou os Evangelhos, como colocou os fenômenos psíquicos operados pelo Cristo na sua exata posição e perspectiva. Veja-se, nesse sentido, principalmente, O evangelho segundo o espiritismo, de Allan Kardec. O que recomenda o espiritismo é que ponhamos em prática a moral pregada pelo Mestre e resumida por ele ao cabo dos seus três anos incompletos de pregação: “Amai a Deus sobre todas as coisas e o próximo como a vós mesmos”. Nisso está o espírito de toda a lei e de todos os profetas.

Era o que tínhamos a lembrar, quando, mais uma vez, nosso pensamento repousa, neste Natal, na imagem daquele que está sempre presente no coração e no espírito dos que sonham com um mundo de paz, harmonia e de amor.

Do livro  Estudos e crônicas, que reúne artigos do autor para o Reformador, com o pseudônimo João Marcos, FEB, 2013.

Lugar de Jesus na história do mundo
O acontecimento mais importante da história do mundo foi a revolução que permitiu às camadas mais privilegiadas da humanidade passarem de antigas religiões, reunidas sob o vago nome de paganismo para uma religião fundamentada na unidade divina, na trindade, e na encarnação do filho de Deus. Essa conversão, a fim de que pudesse ser concretizada, levou quase mil anos. Para a formação dessa nova religião foram precisos pelos menos trezentos anos. Foi nessa época que viveu uma pessoa incomum que, por sua iniciativa ousada e pelo amor que soube inspirar, criou as bases e marcou o início da futura fé da humanidade. (A vida de Jesus, de Ernest Renan. Redação)