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Medicina: o outro lado da cura

Por Eliana Haddad

Allan Kardec previu, no século 19, que muitos médicos poderiam ser médiuns, quando entrassem na via da espiritualidade. “Muitos verão desenvolver-se em si faculdades intuitivas, que lhes serão um precioso auxílio na prática” (Revista Espírita –outubro, 1867). Mas advertiu: “a medicina é uma das carreiras sociais que se abraça para dela se fazer uma profissão, e a ciência médica só se adquire a título oneroso, por um trabalho assíduo, por vezes penoso”.

O codificador procurava assim separar devidamente as duas situações, salientando inclusive que “a mediunidade curadora não matará a medicina nem os médicos, mas não pode deixar de modificar profundamente a ciência médica”, sendo necessário que ambas – ciência e mediunidade –  prestem-se mútuo apoio.

Mas esse processo não é tão fácil. Exige adoção de uma nova visão pelos cientistas. Atraídos por enigmas fascinantes, via de regra, buscam respostas para a origem do universo e da vida, a evolução das espécies, o funcionamento do corpo humano e sua preservação. Com a medicina não foi diferente, sendo inegável o acentuado progresso tecnológico. Mas o que deveria ser utilizado apenas como instrumento, muitas vezes impede que profissionais de saúde vejam o homem como um ser integral e não apenas como uma doença.

A própria Organização Mundial de Saúde define saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não consistindo somente da ausência de uma doença ou enfermidade”. É um avanço, mas ainda falta o aspecto espiritual, o que vem sendo pleiteado por várias entidades de saúde e espiritualidade. No Brasil, principalmente, o movimento dos médicos espíritas vem ganhando cada vez mais espaço nas mídias, e a espiritualidade no tratamento dos pacientes tem despertado profissionais para a retomada de uma medicina mais abrangente e humanizada. Para isso, o empenho na divulgação das temáticas espíritas tem se transformado em importantes congressos, descortinando um nova visão quantos aos cuidados com os pacientes, levando-se em consideração também a parte espiritual do homem para a compreensão e o alívio de seus tormentos. 

De 23 a 25 de junho, por exemplo, será realizado em Belo Horizonte mais um Mednesp, que há 20 anos vem se empenhando para construção de um novo paradigma para a saúde.

Para o médico-cirurgião Décio Iandoli*,  a medicina na atualidade realmente passa por mudança de paradigma. Os médicos estão mudando  a forma de ver as pessoas e, consequentemente, a maneira de abordá-las. Segundo ele, toda a tecnologia e as possibilidades de sua aplicação amealhadas nestes mais de 100 anos de medicina científica estão passando a ocupar seu real lugar como instrumentos, não como filosofia para o exercício da profissão.

Décio Iandoli

Ele reconhece que estamos apenas começando, mas garante que o processo irreversível já foi deflagrado e acontecerá muito mais cedo do que podemos supor. Em entrevista exclusiva ao Correio Fraterno ele respondeu:

Por que o lado espiritual não é valorizado no estudo e na prática médica?

É uma questão histórica. Como as instituições religiosas detinham o poder sobre a fé, 

política e ciência, para continuar seu crescimento precisou se desvincular da religião e, de roldão, virou as costas para a questão espiritual, abandonando-a nas mãos das instituições religiosas. A medicina que praticamos hoje é produto deste litígio, guarda o ranço e o preconceito que nega tudo o que não é matéria.

Não há o risco de se ‘misturarem as estações’ entre espiritismo e medicina?
A visão do todo esclarece, não confunde. Para entendermos as pessoas e seus mecanismos de saúde e doença precisamos compreender todas as facetas que as constituem, e o espiritismo tem muito a dizer sobre isso.

Qual a importância dos conhecimentos espíritas para o profissional de saúde?
Além da compreensão dos mecanismos mais profundos de geração das doenças e transtornos dos seres humanos, eles aperfeiçoam a relação médico-paciente, assim como faz com todas as relações humanas, reeditando o papel do médico, não mais como o curador, mas como o cuidador.

Com tanta tecnologia, a medicina precisa resgatar e aproveitar algo do passado?
Acho que sim, mas não num sentido de retroceder, mas de avançar. Evoluímos em espiral, como se estivéssemos subindo uma grande escada caracol. Parece que andamos em círculos, mas a cada volta estamos um nível acima, percebendo melhor conceitos antigos ou renovando deliberações anteriores.

É possível realizar uma medicina espiritual sem crendices e superstições?
Claro que sim. É justamente o que buscamos. Basta estabelecermos o conhecimento através da ciência e da experimentação, configurando aquilo que pode ser utilizado com eficácia e aquilo que é inútil ou prejudicial. O trabalho de Chico Xavier, notadamente a obra de André Luiz, é um grande roteiro que nos descortina importantes mecanismos do que temos chamado de fisiologia transdimensional e acusa as direções para as quais devemos apontar nossos estudos e pesquisas.

Como as faculdades de medicina encaram, hoje, a existência e a interferência do espírito?
Cada vez com maior seriedade. Cerca de  94% das escolas de medicina americanas já contam com a disciplina de medicina e espiritualidade nos seus currículos e, no Brasil, multiplicam-se grupos e ligas acadêmicas que se dedicam ao estudo deste tema. 

Qual o maior desafio das Associações Médico-Espítitas?
A pesquisa. Trazer à luz da comunidade científica aquilo que já sabemos pela revelação espírita, seja indo aos laboratórios, aos aparelhos de neuroimagem funcional ou à pesquisa biológica ou psicológica. 

O que esperar do futuro?

Estamos terminando um grande e importante capítulo do nosso desenvolvimento, o materialismo. Através deste paradigma descortinamos grande parte dos mistérios que nos rodeavam e, muitas vezes, nos assustavam, porém este se esgota. Não se mostra capaz de responder questões fundamentais como, por exemplo, o que é vida, o que é mente, como se explicam curas ‘milagrosas’ ou como surgem certas   doenças provocadas pelos nossos sentimentos em desalinho. Nosso próprio desenvolvimento nos trouxe a este lugar em que nos encontramos hoje. Estamos precisando de novas abordagens, de um novo olhar, um novo paradigma que nos permita seguir em frente. É a era do espírito que se inicia.

*Professor universitário, escritor e vice-presidente da Associação Médico-Espírita do Mato Grosso do Sul.

(Publicado no jornal Correio Fraterno - edição 439)