Lisboa e Voltaire: Tudo está bem?
Na manhã do dia 1º de novembro de 1755, parte da população de Lisboa ocupava as ruas e igrejas celebrando o Dia de Todos os Santos. No mesmo momento, a algumas centenas de quilômetros dali, no oceano Atlântico, um forte abalo sísmico dava início a uma série de eventos que marcaria dolorosamente essa data.
Um tremor atingiu a costa portuguesa com violência. Os desmoronamentos foram o prelúdio do que ainda estava por vir. Após o brusco recuo do mar, as enormes ondas devastaram a parte baixa da cidade. Finalmente, um incêndio de grandes proporções demorou dias a ser debelado, consumindo vidas e bens, estimando-se 60 mil fatalidades.
Cerca de vinte dias depois desse trágico acontecimento, o filósofo iluminista francês François-Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire, publicava um provocativo texto intitulado Poema sobre o desastre de Lisboa: ou o exame do axioma "tudo está bem", questionando o argumento ontológico do filósofo alemão Leibniz sobre a Providência divina.
Como explicar a existência de um Deus bom e justo que permita ou promova desgraças humanas? Quais teriam sido os crimes cometidos pelas crianças portuguesas esmagadas sob escombros junto com suas mães?
Esses questionamentos, entretanto, refletem um incômodo que sempre pairou no ambiente filosófico sobre o dogmatismo teísta (preceito indiscutível da existência de Deus). O paradoxo de Epicuro, formulado cerca de 300 anos antes de Cristo, já apresentava um dilema lógico sobre a existência do mal e as qualidades de Deus. Tal paradoxo parte do pressuposto que Deus poderia apresentar, simultaneamente, apenas duas das três características: onisciência, onipotência e benevolência.
Se fosse onisciente e onipotente, teria conhecimento do mal e poderia extingui-lo, mas não seria benevolente, ao permitir que o mal existisse.
Se fosse onipotente e benevolente, então poderia extinguir o mal e, sendo bom, desejaria eliminá-lo, mas não o fazia por desconhecer onde todo o mal estaria; logo ele não seria onisciente.
Se fosse onisciente e benevolente, saberia onde todo o mal se encontrava e desejaria extingui-lo, mas como o mal aflige os homens, então ele não seria onipotente, pois não consegue extinguir o mal, mesmo desejando fazê-lo.
O paradoxo não discute a subjetividade presente nas definições de bem e mal, mas reflete a incompreensão, frente a atributos divinos baseados na experiência humana.
Diferentes pensadores, em épocas variadas, propuseram respostas a essas questões, como Tomás de Aquino, no século 13, que afirmou que o Homem seria incapaz de atingir os mistérios divinos servindo-se da razão. Somente pela fé o conseguiria.
O poema de Voltaire sobre o desastre de Lisboa também não ficou sem resposta. Seu conterrâneo, Jean-Jacques Rousseau, escreveu em 1756 uma carta rebatendo o ceticismo e a indignação expressos pelo iluminista. Além da defesa sobre a perfeição da Providência e da ordem natural das coisas que escapa à compreensão humana, Rousseau ainda apontou que o próprio Homem pode agir contra si mesmo, ao citar, no caso português, as perigosas construções erguidas de maneira imprudente para abrigar muitas famílias, que agravaram os efeitos dos desmoronamentos.
Não satisfeito, Voltaire retomaria o assunto em 1759, publicando uma de suas obras mais conhecidas: Cândido ou O otimismo. Nesse conto filosófico, tendo como pano de fundo o terremoto de Lisboa, o personagem principal que dá título ao livro é caracterizado como um jovem ingênuo que recebe ensinamentos sobre o otimismo de Leibniz, mas diversos acontecimentos trágicos fazem com que sua visão de mundo seja questionada.
Voltaire desencarnou em 1778, deixando um legado de críticas e escárnios às crenças religiosas e àqueles que propagavam a ideia de ordem natural divina. A herança cultural de Voltaire, entretanto, não se resume a esses ataques destrutivos, mas também a adequadas contribuições à reflexão, nos campos políticos, sociais e econômicos.
Ao combater o absolutismo e o fanatismo dogmático, ele enalteceu a liberdade de pensamento, as liberdades civis e o livre comércio, posicionando-se contra a interferência do Estado na vida das pessoas e na economia.
No século seguinte, Allan Kardec indagaria aos Espíritos a respeito da mesma problemática do bem e do mal e, dentre outros tópicos, sobre os flagelos humanos e a justiça divina.
As respostas mediúnicas obtidas nas questões 737 a 741 de O livro dos espíritos lembram alguns dos argumentos de Leibniz e Rousseau, porém sustentadas no esclarecimento sobre o processo evolutivo do ser espiritual, em detrimento da matéria transitória. Resumidamente, o que parece ser um castigo é, na verdade, uma oportunidade de aprimoramento moral e intelectual, individual e coletivo, reflexo natural da marcha evolutiva em que se encontra o Homem e de suas necessidades correlatas. Essa ordem só faz sentido abandonando-se as explicações materialistas ou aquelas que desembocam nos mistérios igrejeiros e abraçando-se o princípio da pluralidade das existências humanas guiadas por leis naturais imutáveis, fundamentadas na justiça e no amor divinos para a realização da perfeição espiritual de que os seres são suscetíveis.
Evocado por Kardec em 1859 e em comunicações posteriores (ver Revista Espírita agosto/setembro de 1859, maio de 1862), Voltaire, em espírito, manifesta-se amargurado pelo rumo que tomou enquanto encarnado. Confessa ter deixado o orgulho e o sarcasmo conduzirem suas ações e que sofria pelas consequências danosas que promoveu, influenciando muitas pessoas, especificamente sobre o aspecto religioso. Em vez de iluminar mentes, combatendo os defeitos e os vícios das religiões constituídas, enaltecendo a verdade perene contida na mensagem cristã, negou a bondade e a justiça divinas e fez-se vítima de sua própria arrogância cética.
A perspectiva espiritual fez Voltaire rever suas concepções sobre Deus e reconhecer a excelência do modelo de virtude que a humanidade possui em Jesus.
Hoje nos beneficiamos das luzes que o espiritismo oferece, aliando a razão que Voltaire tanto prezava com a fé baseada em evidências, capaz de transportar montanhas mediante a liberdade e responsabilidade individuais. Tudo está bem.
Marco Milani
Marco Milani é presidente da USE Regional de Campinas-SP.
A confissão de Voltaire
" Meus caros amigos! Quando eu estava entre vossos pais, tinha opiniões, e para sustentá-las e fazê-las prevalecer entre os contemporâneos, muitas vezes simulei uma convicção que realmente não possuía. Foi assim que, querendo atacar os defeitos e os vícios em que caía a religião, sustentei uma tese que hoje estou condenado a refutar. Ataquei muitas coisas puras e santas, que a minha mão profana deveria ter respeitado. Assim, ataquei o próprio Cristo, esse modelo de virtudes sobre-humanas. Sim, pobres homens! Nós nos assemelharemos talvez um pouco com a nosso modelo, mas nunca teremos a dedicação e a santidade que ele demonstrou. Ele estará sempre acima de nós, porque ele foi melhor antes de nós. Ainda estávamos mergulhados no vício da corrupção, e ele já estava sentado à direita de Deus. Aqui, diante de vós, eu me retrato de tudo quanto minha pena traçou contra o Cristo, porque o amo, sim, eu o amo. Sentia não ter podido fazê-lo ainda."
(Trecho da comunicação de Voltarie, em reunião mediúnica, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, publicada na Revista Espírita em setembro de 1859.) Redação.
Os flagelos humanos e a justiça divina
Com que fim Deus castiga a Humanidade com flagelos destruidores?
Para fazê-la avançar mais depressa. Não dissemos que a destruição é necessária para a regeneração moral dos Espíritos, que adquirem em cada nova existência um novo grau de perfeição? E necessário ver o fim para apreciaras resultados. Só julgais essas coisas do vosso ponto de vista pessoal, e as chamais de flagelos por causa dos prejuízos que vos causam; mas esses transtornos são frequentemente necessários para fazer com que as coisas cheguem mais prontamente a uma ordem melhor, realizando-se em alguns anos o que necessitaria de muitos séculos. (O livro dos espíritos, perg. 737)
Comentário de Kardec: Entre os flagelos destruidores, naturais e independentes do homem, devem ser colocados em primeira linha a peste, a fome, as inundações, as intempéries fatais à produção da terra. Mas o homem não achou na Ciência, nos trabalhos de arte, no aperfeiçoamento da agricultura, nos afolhamentos e nas irrigações, no estudo das condições higiênicas, os meios de neutralizar ou pelo menos de atenuar tantos desastres? Algumas regiões antigamente devastadas por terríveis flagelos não estão hoje resguardadas? Que não fará o homem, portanto, pelo seu bem-estar material, quando souber aproveitar todos os recursos da sua inteligência e quando, ao cuidado da sua preservação pessoal, souber aliar o sentimento de uma verdadeira caridade para com os semelhantes? (Comentário de Allan Kardec à pergunta 741, em O livro dos espíritos)
(Artigo original publicado no Jornal Correio Fraterno)