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Coerência doutrinária é tema na pesquisa espírita

Registro de Inventário do final do ano civil de 1872/1873, assinado por Amélie Boudet, uma das fontes primárias existentes que comprovam que a 4ª edição de O céu e o inferno foi impressa em fevereiro de 1869 (Kardec em vida) e que a 5ª e 6ª edições de A gênese são do ano de 1869.

Por Eliana Haddad e Izabel Vitusso

Nos dias 24 e 25 de agosto, foi realizado em São Paulo, na sede da USE, o 17º Enlihpe – Encontro Nacional da Liga de Pesquisadores de Espiritismo, tendo como tema central “Coerência doutrinária na pesquisa espírita”. O evento, também transmitido ao vivo, reuniu participantes de diversas áreas do conhecimento, muitos deles acadêmicos dedicados a trabalhos e estudos sobre temas ligados à espiritualidade.

Sob a coordenação do físico e pesquisador Alexandre Fontes da Fonseca, foram apresentados cinco trabalhos: “Coerência doutrinária, limites e desafios” (Marco Milani); “Allan Kardec: entre Comte e Diltheys, ou porque o espiritismo não é uma ciência natural” (Jáder Sampaio); “Reflexões históricas sobre as propostas da versão definitiva de A gênese: revista corrigida e aumentada por Allan Kardec ou adulterada pós-Kardec?” (Adair Ribeiro Jr., Carlos Seth Bastos e Luciana Farias); “A classificação dos fenômenos estudados no espiritismo, metapsíquica e parapsicologia” (Ricardo Terini) e “Coerência doutrinária no capítulo 12 de Nos domínios da mediunidade” (Allê De Paula e Alexandre da Fonseca). 

Participantes da roda de conversa

O evento também teve uma seção de apresentação de projetos de pesquisa. Nela, o homeopata e fisiatra Marcelo Saad, da Associação Médico-Espírita de São Paulo (em coautoria com Roberta de Medeiros), apresentou o projeto “A alteração da escrita nos textos psicografados é um ato voluntário do médium ou a caligrafia do comunicante?”, uma proposta de estudo-piloto em que foi utilizada a grafoscopia — uma especialidade que aplica recursos de verificação sobre a autoria da grafia. 

O 17º Enlihpe contou com duas plenárias. Numa delas, o pesquisador convidado, Raphael Casseb, apresentou algumas perspectivas metodológicas do ensaio “Autoria e psicografia: a hipótese da sobrevivência em obras de Chico Xavier”, realizado em conjunto com Alexandre Caroli e Marina Weiler, e que foi premiado internacionalmente1. 

Marcelo Saad: uso da grafoscopia em pesquisas

Na segunda, o pesquisador, físico e professor de filosofia da ciência da Unicamp, Silvio Chibeni, apresentou o tema “Kardec, Hume e a ciência do homem”, encerrando as atividades do primeiro dia do Enlihpe.

Durante o encontro, foram lançados os livros: 160 anos de O livro dos médiuns, com os textos selecionados do 16º Enlihpe (realizado online, devido à pandemia); Coerência doutrinária na pesquisa espírita, com os textos selecionados do 17º Enlihpe; science of life after death, de Alexander Moreira-Almeida, Marianna Costa e Humberto Schubert; A obra esquecida de Angeli Torteroli, de Adair Ribeiro Jr. e Chico Xavier e o mundo dos espíritos: um estudo de representações sociais, de Tiago Paz e Albuquerque.

O Enlihpe de 2023 será realizado em Juiz de Fora, MG, sobre o tema “Perispírito: concepções e pesquisas” e, em 2024, em São Paulo, sobre os “160 anos de O evangelho segundo o espiritismo”.2 

O alinhamento com a codificação

Allê de Paula e Alexandre Fonseca

Alexandre Fonseca, fundador do Jornal de Estudos Espíritas, juntamente com Allê De Paula, destacou a necessidade da análise doutrinária de subsídios de autores encarnados e desencarnados para utilização como exemplos e estudo dos conceitos do espiritismo. Com base na recomendação da própria doutrina espírita de analisar, separar e ficar com o que é bom, eles apresentaram um estudo sobre a coerência doutrinária em cinco pontos selecionados do conteúdo do capítulo 12 da obra Nos domínios da mediunidade, de autoria do espírito André Luiz, pela psicografia de Francisco C. Xavier, sobre a clarividência e clariaudiência. Um deles diz respeito a Hilário, personagem que desconhece a doutrina espírita e quer saber se esses fenômenos se localizavam nos olhos e nos ouvidos do encarnado, sendo esclarecido ser toda percepção mental, conceito que coincide com o que Kardec explica em O livro dos espíritos, p. 249 A (todas as percepções são atributos do espírito e lhes são inerentes ao ser). “Os demais conceitos apresentados no capítulo seguem de acordo com o que a doutrina ensina a respeito da mediunidade e, em particular, sobre as manifestações visuais”, exemplifica Fonseca.

Termos da parapsicologia e metapsíquica no espiritismo

O físico e professor Ricardo Andrade Terini, mostrou o emprego de termos diferentes usados pela parapsicologia e metapsíquica para as classificações dos fenômenos estudados e já denominados por Kardec 1855. Diferentes disciplinas científicas foram criadas e inúmeras sociedades para pesquisas ao longo do tempo. “Com a divulgação desses estudos, inclusive no Brasil, o uso dos termos e conceitos dessas ciências se misturou àqueles próprios do espiritismo”, explicou Terini, cujo estudo comparativo procurou justamente recuperar as principais classificações dos fenômenos psíquicos ou mediúnicos, buscando reduzir confusões no uso de termos e conceitos, em particular, na divulgação do espiritismo.

A ciência no tempo de Kardec
Analisando como era a filosofia da ciência na época de Kardec e atualmente, o psicólogo e pesquisador Jáder Sampaio, criador do blog Espiritismo comentado, discorreu sobre o tema “Allan Kardec: entre Comte e Dilthey, ou porque o espiritismo não é apenas ciência natural”.

Destacou a faixa de tempo que mostrou mudanças fundamentais na época de Kardec – de 1830, com a publicação do Curso de Filosofia, de Augusto Comte, a 1883, com a obra Uma introdução ao estudo da ciências humanas, de Wilhelm Dilthey.

Jáder explicou que Kardec desenvolveu o espiritismo num intervalo entre uma proposta de produção do conhecimento, que foi a transformação da filosofia natural em ciência natural, e o nascimento da ciências humanas, trazendo novos métodos de estudo para seus diferentes objetos e pesquisa.

“Kardec conhecia as discussões metodológicas de sua época e queria propor um novo conhecimento com status de ciência e filosofia. A questão da religião surgiria depois”, elucidou Jáder.

Jáder assinalou que, mais tarde, Dilthey também perceberia a existência de uma série de disciplinas que seguiam um método distinto do das ciências naturais, preocupando-se com o mundo interior do homem. “Isso gerou uma transformação em métodos e no próprio objeto da filosofia da natureza”, acrescentou.

A versão definitiva de A gênese

O estudo foi realizado pelos pesquisadores Adair Ribeiro Jr., Carlos Seth Bastos, e Luciana Farias, que desenvolvem projetos sobre a vida e as obras de Kardec, baseados em pesquisa e estudo de textos, cartas e manuscritos da época, recentemente encontrados em Paris e que vêm sendo disponibilizados digitalmente (www.allankardec.online).

Eles promoveram uma revisão histórica e uma análise crítica das diversas propostas que tratam da identificação da versão definitiva de A gênese. Apresentaram novas fontes primárias que reforçam serem de Kardec as alterações da 5ª edição da obra, dentre as quais um exemplar da sua primeira impressão dessa, de 1869."

“Nenhuma das propostas trouxeram evidências que indique a interferência de terceiros no texto de A gênese. Foram apenas alegações baseadas na existência de diferenças entre edições, sejam elas originais em francês ou traduções”, explicaram.

A ciência do homem

O físico e filósofo Silvio Chibeni destacou que a ciência como conhecemos hoje é relativamente recente e que, na antiguidade, todos os ramos do saber eram filosofia.

“No século 17, a filosofia natural teve grande avanço com seus métodos e o desenvolvimento de novas teorias sobre o mundo, tendo Isaac Newton como sua referência durante 200 anos, inclusive entre os filósofos que estavam interessados em estudar o ser humano”, salientou Chibeni.

Ele citou o filósofo escocês David Hume, que ao escrever o livro Um tratado da natureza humana (1740), mostrou a necessidade de se modificar a forma de estudar o homem – não biologicamente, mas como ser pensante –, propondo adaptar o método experimental também para as questões morais, o que denominou de “ciência do homem”.

Luciana Farias

“No final do século 19, início do século 20, não havia um projeto integrado para as ciências humanas que, como Newton, nas ciências da natureza, pudesse servir de paradigma”, observou, lembrando que Kardec também tinha esse mesmo projeto, indo atrás dos fenômenos mediúnicos e sonambúlicos não como fatos isolados, mas para fazer uma teorização sobre eles.

“Foram os fenômenos observados que acabaram por revelar a natureza espiritual do ser humano”, destacou, acrescentando que foram os fenômenos intelectuais que fundamentaram a ciência espírita.

Coerência doutrinária – Limites e desafios
Marco Milani apresentou uma amostra de um levantamento realizado junto a alguns dirigentes espíritas a respeito de critérios e graus de aceitação de conceitos presentes em obras mediúnicas, correlacionando as respostas com o tempo de vivência no meio espírita.

Destacando que Allan Kardec já havia previsto a incorporação do conhecimento científico e a aplicação do critério da universalidade dos ensinos dos espíritos para a legitimação do que poderia ser considerado um novo saber doutrinário, pontuou alguns desafios importantes, a serem enfrentados, valorizando a iniciativa de eventos que cuidam com seriedade da pesquisa espírita, como têm sido os Enlihpes.

Para ele, a coerência doutrinária espírita implica a coerência e nexo com os postulados kardequianos, que devem sempre ser a base de tudo.

O elo entre a ciência e a fé
O filósofo Humberto Schubert, ao término do evento, comentou na roda de conversa o pensamento de Aristóteles sobre felicidade. “Todas as pessoas, sem exceção, querem ser felizes, terem a sensação de que a vida é plena”.

“Pode-se não ter o entendimento sobre essa busca, sobre o que seja a felicidade, mas temos isso como meta comum, indicando que coerência faz parte da lógica, do ser racional. “É por isso que inúmeros pensadores vêm preparando o terreno dos nossos espíritos para uma vivência coerente também da nossa fé, da nossa religiosidade”, observou, assinalando ter sido essa, também, a busca tão sonhada por Kardec. “Elaborar uma filosofia que pudesse harmonizar a forma rigorosa da ciência de abordar a realidade e a construção de uma fé vibrante, que eleva e transforma as vidas das pessoas”, concluiu.

Saiba mais em https://bit.ly/correionews-concurso-mundial 

  1. Os vídeos das apresentações dos trabalhos podem ser acessados em www.espiritualidades.com.br