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A gênese: Pesquisas indicam alterações nos originais de Allan Kardec

Por Paulo Henrique de Figueiredo

Em dezembro de 1884, o biógrafo de Kardec, Henri Sausse, apoiado pelo editor Gabriel Delanne, Léon Denis e Berthe Froppo, denunciou no jornal Le Spiritisme, no artigo "A infâmia", que a quinta edição do livro A gênesehavia sido adulterada em mais de 260 itens.
Dita "revisada, corrigida e aumentada", a edição fora publicada quando Pierre-Gaetan Leymarie acumulava as funções de secretário-gerente da Revue Spirite e administrador da Sociedade Anônima da Caixa Geral e Central do Espiritismo.
Sausse, Froppo, Delanne, Denis e Amelie Boudet, entre outros, vinham denunciando os desvios de Leymarie e seus partidários com relação aos interesses originais propostos por Kardec. Através de palestras e artigos, afrontavam conceitos da doutrina espírita, misturando teosofia, mistificações e temas contrários ao espiritismo.
Em março de 1885, Leymarie publicou na Revue uma carta-resposta de seu amigo A. Desliens, antigo administrador da Sociedade em 1870 e 1871, informando que, antes mesmo de ter se esgotado a primeira tiragem de A gênese, Allan Kardec havia autorizado uma nova publicação em 1868. "São as 4ª, 5ª e 6ª edições (...) e esta matriz serviu para as edições publicadas de 1869 a 1871 e em diante". Segundo Desliens, Kardec teria feito modificações em letras soltas da placa provisória, diretamente na tipografia.
Durante alguns anos a polêmica se sustentou, mas esfriou e acabou esquecida, sendo as traduções autorizadas por Leymarie pelo mundo afora feitas com base na versão alterada da quinta edição. Somente na Espanha, excepcionalmente, José Maria Fernandez Colavida (1819-1888) ofereceu a tradução da segunda edição original de Kardec, escapando assim das alterações depois efetuadas.
No Brasil, em 1998, o escritor Carlos de Brito Imbassahy participava de um grupo de debate de Filosofia Espírita, num programa de bate-papo da internet (TiVejo). Estudando A gênese, tinha à mão uma rara edição, a terceira, em francês, herdada de seu pai, o escritor Carlos Imbassahy (1883-1969). Percebendo que o texto não coincidia com as traduções dos demais participantes, 'redescobriu' as alterações, imaginando equivocadamente que o tradutor brasileiro seria o responsável. Sua indignação não teve repercussão e ele resolveu traduzir para o português a terceira edição original. Dezoito anos depois, em 2016, o presidente da Confederação Espírita Argentina, tradutor das obras de Kardec, Gustavo Martínez, recebeu um e-mail questionando-o sobre as controvérsias históricas em torno de A gênese. Consultou a pesquisadora brasileira Simoni Privato, espírita e diplomata, residente em Montevidéu e que estava em viagem pela divulgação espírita em Buenos Aires (Leia a entrevista).


Direto na fonte

Em abril de 2017, Simoni Privato foi a Paris para continuar sua pesquisa. "Tive em minhas mãos, por exemplo, o testamento original de Allan Kardec, escrito de seu próprio punho. Ao mesmo tempo que me emocionava, compreendia que tinha o dever de compartilhar o resultado dessa investigação".
Depois de obter autorizações de acesso aos documentos judiciais inéditos, Simoni publicou no final do ano passado o resultado de sua minuciosa investigação no livro El legado de Allan Kardec (CAE). Na obra, conclui que "os novos documentos encontrados provam, de maneira categórica, que a quinta edição de La Génesis, foi publicada em 1872, mais de três anos depois da morte física de Allan Kardec, sendo portanto falsa qualquer alegação a favor de que Allan Kardec seria o autor das modificações nela existentes".
Atualmente, podemos ponderar que trágicas circunstâncias históricas criaram uma nuvem de fumaça, de tal forma que as alterações não foram prontamente percebidas. Depois de 1868, o movimento espírita e o povo francês viveram momentos difíceis. Em março de 1869, a morte de Allan Kardec desfaz a grande rede de comunicação que chegou a mil centros de pesquisa em todo o mundo. Entre 1870 e 1871, a guerra entre Prússia e França. Em um mês e meio, a derrota do exército francês. Cai o imperador, rebelião em Paris, república. Paris é bombardeada, invadida. Na Sociedade de Paris, Desliens renuncia, alegando problemas de saúde, e Leymarie assume. O movimento espírita estava disperso justamente entre a quarta e a a quinta edição.


A necessária restauração do texto original
Quando do lançamento de El legado de Allan Kardec, a Confederação Argentina anunciou a publicação da tradução para o espanhol do conteúdo definitivo da obra, isto é, de 1868, disponível também para download gratuito.
No dia 4 de março próximo, convidada pela USE-União das Sociedades Espíritas, a própria pesquisadora, Simoni Privato, fará um seminário em São Paulo, quando também haverá o lançamento da versão em português de seu livro.
As editoras, os meios de comunicação espírita, palestrantes, escritores, todos são chamados a fazer parte da solução! Uma dedicação solidária em torno do texto original de Allan Kardec em suas traduções brasileiras. Pois a ele devemos essa adequada e grandiosa homenagem: o marco de um resgate histórico, aos 150 anos de A gênese.

Citações bibliográficas
Revista Espírita - Jornal de Estudos Psicológicos. Allan Kardec. FEB, 1858-1869.
El legado de Allan Kardec. Simoni Goidanich Privato. Confederación Espiritista Argentina, 2017.

(Artigo original publicado no Jornal Correio Fraterno)