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O lado espiritual da microcefalia

Por  Eliana Haddad

David Vieira Monducci

Escritor e membro do Instituto Espírita de Estudos Filosóficos, em São Paulo, o neurocirurgião David Vieira Monducci traz nesta entrevista uma cuidadosa abordagem sobre a microcefalia e suas relações espirituais.

Qual a possível relação entre a epidemia das doenças transmitidas pelos Aedes aegypti e a lei moral?
David Monducci - Toda ação deliberada por um ser humano implica uma consequência. A causa está na ação e intenção que a originou, as consequências resultantes são o efeito. Daí falarmos em uma lei de causa e efeito. No cenário da microcefalia perceberemos como efeito um grupo de indivíduos conectados por um conjunto de sinais e sintomas caracterizados por graus diferentes de retardo mental.

No livro Obras póstumas, parte I, no item 'Perguntas e problemas', Allan Kardec apresenta rica análise sobre os casos de expiações coletivas. Podemos entender que esse grupo de indivíduos 'pode' ter estado encarnado em um determinado momento da história humana no qual tenham corrompido os valores da inteligência, como falsos profetas que induziram seus semelhantes a comportamentos que contrariaram a lei de Deus; como políticos que inflamaram paixões menos nobres em grupos sociais promovendo crises e revoluções sangrentas; como escritores que corromperam a mente de jovens leitores com fantasias sexuais levianas e promíscuas, como cientistas que venderam razões e verdades científicas para interesses comerciais escusos.

É possível o espírito reencarnante, gestado por uma mãe que tenha o vírus, não nascer com microcefalia e 'anular' o efeito do vírus? Ele pode interferir nessa causa?

O livro dos espíritos esclarece que um Espírito pode recuar ante uma prova escolhida e, neste caso, romper os laços que o prendem ao corpo em gestação (LE- 345). Todavia, como a prova é escolhida previamente pelo Espírito reencarnante (LE-334) a desistência ante a prova acarretaria maior ônus ao Espírito (LE- 335 e 335a).
Por outro lado, 'anular' o efeito do vírus é uma impossibilidade física, pois implicaria em alterar uma programação espiritual previamente estabelecida, bem como alterar o desenrolar de fenômenos que estão na ordem natural dos processos inerentes ao mundo fenomênico.
Assim sendo, se fizer parte da programação reencarnatória de um determinado Espírito nascer com tal condição patológica, ele não poderá mudar esse processo durante a gestação, podendo, no máximo, fugir à provação. Todavia, importa termos em mente que essa é uma discussão totalmente especulativa.

Qual o papel da deficiência física num planeta de provas e expiações como o nosso?
Toda deficiência tem o poder de despertar nos indivíduos afetados, direta e indiretamente, a percepção do valor e da importância das faculdades prejudicadas. Posto que todos os nossos dons e faculdades são dádivas divinas, convém aprendermos a ser gratos e reconhecidos ao Pai, pelas benesses que nos foram graciosamente ofertadas pela bondade infinita do Altíssimo.

O que significa, espiritualmente, o aumento de casos de microcefalia?
Será preciso aguardar o tempo passar para termos uma visão mais abrangente dos fatos. Até o presente momento, considerando a população brasileira, o aumento dos casos de microcefalia é estatisticamente insignificante, em que pese o impacto social, econômico e biomédico para as famílias afetadas. Entretanto, se em um segundo momento os dados mostrarem que a ocorrência desviou-se muito da curva esperada e alcançou relevância estatística, teremos um novo cenário que exigirá, por parte da coletividade, uma mudança de comportamentos visando ampliar medidas de inclusão social.

Há tantos espíritos que precisam reencarnar ainda nessa condição?
Em relação à necessidade de tantos Espíritos estarem reencarnando nessas condições, precisamos considerar que, como coletividade, estamos nos distanciando da barbárie e da violência de uma sociedade moralmente primitiva e migrando para uma sociedade onde os valores culturais e morais são dominantes. Numa sociedade mais moralizada e educada a corrupção e a perversão da inteligência, posta a serviço do mal, lesando, ofendendo e prejudicando o próximo, exige ajustes na aplicação da lei de causa e efeito. Vale a pena recordarmos a mensagem constante no O evangelho segundo o espiritismo que chama a atenção para o papel do homem inteligente na sociedade (Cap. VII).


A microcefalia é uma doença ou uma síndrome?
A microcefalia pode ser uma doença específica e limitada em si mesma, como também pertencer a um conjunto sindrômico maior. Literalmente, microcefalia significa cabeça pequena (kephalé + micrós). É definida como uma condição neurológica na qual o tamanho da cabeça, ou perímetro cefálico occipito-frontal, é dois ou mais desvios¬-padrão abaixo da média para a idade e sexo. O cenário começa a ficar mais complexo na medida em que esta condição pode ser familiar, determinada por fatores constitucionais, e não necessariamente patológicos. O acompanhamento do desenvolvimento psicomotor dessa criança nos primeiros anos da infância permitirá diferenciá-la dos casos anormais. As crianças que apresentarem um quadro de microcefalia patológica terão que ser submetidas a exames e avaliações médicas para distinguir os casos congênitos (ou primários) dos casos adquiridos (ou secundários). Casos de microcefalia congênita podem ocorrer em função do uso abusivo de álcool, cocaína, heroína ou outras drogas por parte da mãe na fase inicial da gestação, por diabetes materna mal controlada, desnutrição materna, hipotireoidismo materno, insuficiência placentária e anomalias genéticas. Por outro lado, infecções durante a gestação ou logo no início da vida extrauterina, diminuição da oxigenação do cérebro fetal durante o parto ou nos primeiros dias de vida (hipóxia), traumas obstétricos com hemorragias intracranianas, desnutrição infantil com anemia crônica e intoxicações podem ser causas secundárias de microcefalia. As evidências científicas acumuladas desde o ano passado permitem incluir as infecções por zika vírus nesse grupo. Contudo, ainda não foi demonstrado de forma inequívoca como o zika vírus agride o tecido cerebral embrionário e por que ele causaria a microcefalia.

O espírito pode reencarnar com microcefalia por tarefa, para ajudar a ciência, por exemplo?
Sim. Ao lado da prova-expiação há, também, a possibilidade da encarnação como tarefa na qual o Espírito reencarnante aceita o desafio de colaborar com os cientistas, a fim de juntos buscarem superar os limites do conhecimento humano. Na microcefalia, em função da grande diversidade de manifestações clínicas, há muito a ser estudado e descoberto; diferente do cenário como a anencefalia, que não oferece as mesmas possibilidades no âmbito da ciência. Nos casos de prova-expiação precisamos atentar para o fato de que a justiça divina pressupõe equilíbrio e proporcionalidade entre a falta cometida e o reparo que redime o faltoso.


De maneira geral, como encarar a doença para a evolução do espírito? O que compete à ciência?
A doença, assim como qualquer outra provação, fornece ao indivíduo a oportunidade de mostrar o quanto ele já conquistou em termos de paciência, obediência e resignação perante a Lei de Deus.
À ciência compete trabalhar para aquilatar o conhecimento humano convertendo-o em recursos que facultem à humanidade melhores condições de vida física. Melhores condições de vida física propiciam ao usufrutuário dedicar mais tempo e esforço no estudo, no aprendizado e na reforma íntima.

O que dizer para as mães que já estejam passando por essa situação?
O cenário clínico da microcefalia é pontuado por um retardo do desenvolvimento psicomotor com graus variáveis de retardo mental para cada caso em particular. Esse cenário proporciona para as mães, em especial, e para o restante da família de uma criança com microcefalia a oportunidade de colimarem esforços aprendendo a trabalhar de forma integrada e harmoniosa para a construção de um ambiente doméstico onde impere um estado de positiva fraternidade voltada para o bem do próximo. Além disso, como o nível de retardo mental é muito variável de uma criança para outra, todo dia pode ser o dia de uma nova descoberta e de uma nova conquista, o que deixa ao futuro um que de novidade e de surpresas.

Como considera a questão do aborto nos casos de microcefalia?
Totalmente injustificado perante a lei divina. Essas crianças, embora venham a apresentar quadros de deficiência mental, serão passíveis de educação e treinamento, como outros casos de deficiência mental que ocorrem na sociedade atual.

Como fica diante da lei divina a mãe que opta por abortar um filho com microcefalia?
Conforme a resposta da questão 358 de O livro dos espíritos, sempre que transgredimos a lei de Deus assumimos responsabilidades pelas consequências resultantes da nossa ação. A provação nesta circunstância, um filho com microcefalia, não é apenas para o Espírito reencarnante, mas para todo o grupo familiar. A desistência e fuga de um dos membros do grupo acarreta prejuízos para todos. Faz-se, então, necessário fortalecer os laços de família para que seus membros possam apoiar-se mutuamente.

Uma realidade como esta afeta inúmeros segmentos sociais. É também papel das casas espíritas se prepararem para esta demanda?
Em O livro dos médiuns, Kardec afirma que a finalidade precípua das casas espíritas é a educação para a reforma íntima de todos nós. Com essa orientação em mente, é preciso que as casas espíritas se preparem para receber os membros dessas famílias com palavras de consolo, fortalecimento e orientação para que os irmãos em prova perseverem na luta de cada dia e não percam a fé em Deus.

Por que os cientistas nem sempre conseguem desenvolver uma vacina em tempo hábil? A espiritualidade não poderia ajudá-los?
A espiritualidade superior ajuda os verdadeiros cientistas empenhados em buscar respostas e soluções para os desafios que estão postos sobre a bancada dos experimentos, intuindo-os sobre os caminhos que devem percorrer. Entretanto, é necessário cautela e prudência, respeitando-se as exigências e os protocolos dos métodos de investigação científica, percorrendo todas as etapas exigidas no processo de desenvolvimento de novas vacinas e terapias para evitarmos erros, como foi o caso do escândalo da talidomida nos anos 1950.

Qual a responsabilidade das autoridades de saúde, saneamento, com relação a essas epidemias? Poderiam tê-las evitado?
As epidemias de saúde pública fazem parte de fenômenos naturais que, por ora, encontram-se muito além da nossa possibilidade de controle. Todavia isso não exime as sociedades dos deveres de trabalharem de forma consciente e responsável na prevenção de desastres e flagelos que podem ter seus impactos minimizados pela ação preventiva das autoridades responsáveis e da sociedade como um todo.

Que aprendizado tudo isso traz para o homem do século 21?

Em O livro dos espíritos aprendemos que os flagelos que assolam as sociedades humanas proporcionam a oportunidade para que a humanidade exercite a inteligência buscando soluções para os desafios que se apresentam, além de oferecer as condições para o desenvolvimento do amor ao próximo e do desinteresse pessoal.

O que diz O evangelho segundo o espiritismo

 

(Publicado no jornal Correio Fraterno - Edição 468 março/abril 2016)