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O impacto dos documentos inéditos de Kardec

Por Eliana Haddad

Engenheiro naval, pós-graduado em direito tributário, conselheiro do Instituto Espírita de Educação de São Paulo, pesquisador e curador do museu virtual AKOL – AllanKardec.online, Adair Ribeiro Jr. conversou com o Correio Fraterno sobre o projeto que reúne cartas, documentos, fotos, manuscritos, além de obras raras relativos à doutrina espírita.

Quantos acervos existem hoje no Brasil sobre Kardec e como estão sendo tratados? 

Há três grandes acervos, compostos basicamente por cartas, manuscritos e documentos. Grande parte deste material veio dos arquivos que Kardec guardou para a posteridade, como relatado em várias oportunidades na Revista Espírita.

O primeiro acervo é do Museu AKOL, que possui dezenas de cartas de diversos períodos da vida de Denisard Hippolyte Léon Rivail (Allan Kardec) e de sua esposa Amélie Boudet; centenas de páginas de manuscritos das sessões espíritas realizadas na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas – SPEE; atas de presença dos participantes das reuniões; caderno de sessões espíritas realizadas durante a denominada Viagem espírita em 1862; manuscritos de comunicações de diversos grupos espíritas; documentos da SPEE; fotos de Allan Kardec, Amélie Boudet, P. G. Leymarie e outros; documentos da Sociedade Anônima; provas das gráficas com correções efetuadas por Kardec de várias páginas da Revista Espírita; etc. 

O segundo acervo encontra-se na França, sob a curadoria de Charles Kempf, presidente da Fédération Spirite Française. O terceiro pertence à família de Silvino Canuto Abreu e está sob a guarda da FEAL – Fundação Espírita André Luiz – no Centro de Documentação e Obras Raras.

Através de uma iniciativa conjunta, entre os curadores dos respectivos acervos e a Universidade Federal de Juiz de Fora, MG, foi criado um portal multilíngue, denominado Projeto Allan Kardec, inaugurado em setembro de 2020, com o objetivo de divulgar estes acervos, permitindo pesquisas sobre Allan Kardec e suas obras. Os documentos e manuscritos são digitalizados pelos detentores de cada acervo e enviados para a universidade, que efetua a transcrição e tradução, através de um grupo de voluntários. 

Qual a importância da historiografia para a doutrina espírita?

A história pode ser entendida como o conjunto de acontecimentos, situações e fatos ocorridos no passado, que existe independentemente do trabalho dos historiadores. Já a historiografia é o produto primário da atividade dos historiadores, constituída essencialmente por textos escritos, trazendo luz sobre acontecimentos históricos, procurando desvendar seus diversos aspectos. A historiografia se dedica à pesquisa histórica em si e aos critérios de escolha e de coleta de dados, fazendo uso de aspectos metodológicos próprios. Embora o termo historiografia seja recente, Kardec já destacava sua importância, ao reforçar a necessidade de se contar a história do espiritismo. 

Qual a maior contribuição desses acervos para a história do espiritismo? 

Os pesquisadores poderão efetuar análises da personalidade dos vários personagens que atuaram no movimento espírita nascente na França, levantar seus perfis psicológicos, verificar e construir os contextos em que se encontravam inseridos nos anos iniciais da codificação. Também, acompanhar a evolução do pensamento de Allan Kardec ao longo da elaboração de toda a codificação, conhecendo melhor a ambiência, pressões e intrigas a que ele foi submetido. A análise dos documentos ajudará a verificar a metodologia utilizada por ele, bem como sua influência no tratamento dos ensinamentos recebidos através das comunicações na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Com novas fontes primárias, as interpretações serão mais completas e precisas para a história do espiritismo, reafirmando-a ou fazendo complementações, ou mesmo corrigindo-a.

O que revelaram as últimas pesquisas sobre Kardec e o espiritismo? 

Muitas pesquisas têm sido desenvolvidas desde 2018, em especial por Carlos Seth. Por exemplo, o levantamento meticuloso sobre os vários médiuns que atuaram na Sociedade Parisiense e na codificação, que propiciou a identificação de muitos destes personagens. Outra referência é sobre a pesquisa das irmãs Baudin, que culminou com a publicação de um artigo no Jornal de Estudos Espíritas – JEE: A verdadeira identidade das primeiras médiuns utilizadas por Kardec. Desde 2020, com a criação do museu AKOL, nos aproximamos de Carlos Seth, e através de uma pesquisa colaborativa – juntamente com Luciana Farias do portal obrasdekardec.com.br – ocorreu uma dedicação quase que exclusiva à polêmica hipótese da adulteração da 5ª edição de A gênese. Após diversos posts no Facebook, com as informações que foram sendo encontradas, abrindo a oportunidade para o debate e a contribuição daqueles que nos acompanham, estamos publicando nossas conclusões em uma série de artigos no JEE: “Uma revisão na história da 5a edição de A gênese”. 

Esta pesquisa sugere Allan Kardec como o autor das alterações efetuadas na 5ª edição de A gênese como hipótese mais provável, à partir de uma série de fontes primárias e da localização de um exemplar de uma 5ª edição de A gênese de 1869, na biblioteca da Universidade de Neuchâtel na Suíça. 

Outra pesquisa conjunta se refere à autoria da 4ª edição da obra O céu e o inferno, publicada após o desencarne de Kardec, cuja hipótese também caminha colocando-o como o autor das alterações encontradas na edição. 

Como foram encontrados esses documentos? 

O acervo do AKOL foi adquirido de Philippe Chigot em 2018, proprietário da centenária Livraria Leymarie, estabelecimento historicamente ligado ao espiritismo no século 19. O da FEAL foi obtido por Canuto Abreu, em Paris, em meados do século 20. O acervo gerido por Charles Kempf, denominado Acervo Forestier, veio através da família de Hubert Forestier, um dos continuadores do espiritismo francês, juntamente com Jean Meyer. Acreditamos que ainda possam existir documentos relativos ao arquivo pessoal de Kardec espalhados em coleções ao redor do mundo. Muito material impresso da época, jornais ou obras publicadas relativas ao espiritismo, está sendo encontrado e disponibilizado a todo momento, através também do trabalho de divulgação de Wanderlei Santos (Autores Espíritas Clássicos), Ery Lopes (portal luzespirita.org.br) e Charles Kampf (spiritisme.net).

Avaliam como serão assimiladas essas novas informações?

Todo este material propiciará que ocorra uma descrição mais detalhada de muitos acontecimentos durante a elaboração da codificação e do pós-desencarne de Kardec. A mudança de pensamento dos estudiosos, pesquisadores e do movimento espírita em geral não é algo tão simples e natural. A escrita dessa atualização na história e sua disseminação não garantem a rápida assimilação por todos.

Por exemplo: mesmo depois de demonstrado que as irmãs Baudin (as médiuns participantes do início da codificação) tinham cerca de 30 anos quando trabalharam em O livro dos espíritos, e que seus nomes eram, na verdade, Caroline e Pélagie, muitos continuam afirmando que elas eram adolescentes e se chamavam Caroline e Julie. Novos fatos devem ser assimilados de forma gradativa. Esta é uma das importantes contribuições que os órgãos de comunicação podem dar.

Em termos éticos, como você analisa a revelação de assuntos pessoais de Kardec?

O interesse pela biografia de Rivail e demais personagens deve ser pautado sempre por elevados sentimentos morais que devem estar presentes em todos os adeptos do espiritismo, um princípio de nossa própria doutrina.

Não verificamos nos documentos que tivemos acesso nada que possa ferir a integridade de ninguém, segundo os costumes da época, ou que possa ser suscetível de violar qualquer regra de conduta ética na sua divulgação. Kardec defendia a necessidade de as gerações futuras terem acesso à memória de pioneiros para que não houvesse “glórias usurpadas.” (Revista Espírita, maio/ 1864).

Qual a importância desses documentos para o estudo comparado das obras de Kardec? 

Contribuir para o estudo comparado foi uma das motivações para a criação do site obrasdekardec.com.br, que compartilha ebooks gratuitos com os textos lado a lado de diferentes edições, em francês e em português. Mas, isoladamente, ele não permite a determinação da autoria de uma obra, que tende a ficar restrita a simples interpretação dos textos, ainda que esta comparação inclua a análise de coerência com as demais obras da codificação, visto que há, no movimento espírita, diferentes entendimentos a respeito de textos de edições sabidamente de Kardec. Por outro lado, a determinação de autoria de uma obra tem um grande espaço e pertinência com a historiografia. 

Fisicamente, com quem estão esses materiais de acervo histórico? Não se corre o risco de ficarem com acesso restrito?

Estão de posse dos respectivos curadores. O que posso informar é que existe, por parte do museu AKOL, a disposição de divulgar todos os documentos de forma gratuita e universal. Isso será feito na medida e na capacidade de transcrição e tradução dos voluntários do Projeto Allan Kardec. 

Em sua opinião, o que há ainda de mais importante para se revelar? 

Ainda é muito cedo para dizer. A grande maioria dos manuscritos não foi transcrita nem traduzida. 

Esses documentos de acervos diferentes se complementam ou são contraditórios? 

Excelente pergunta! Esta era uma curiosidade de vários pesquisadores. Do que verificamos, os acervos se complementam. Muitas cartas que se encontram em um acervo possuem suas respectivas respostas em cartas localizadas em outro. 

Quais pesquisas estão em andamento?

Recentemente, terminamos duas pesquisas que serão publicadas em artigos no 16º Enlihpe – Encontro da Liga dos Pesquisadores do Espiritismo (acontece online em agosto). Um artigo trata da versão original e inédita do Catálogo Racional, enquanto o outro aborda o papel de Amélie Boudet na continuidade do movimento espírita pós-desencarne de Kardec. 

Estamos focados agora no levantamento de dados sobre os fatos ocorridos no movimento espírita francês de 1869 até o final daquele século, com especial atenção à atuação de Amélie Boudet e Pierre Gaëtan Leymarie. 

Acredita que possa haver maior interesse acadêmico em relação a pesquisas com temáticas espíritas?

Assim como Kardec, tenho convicção disso. O que vemos acontecer na Universidade Federal de Juiz de Fora, que possui um trabalho com relação à espiritualidade através do NUPES (Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde), é um caminho que deveria ser seguido por outras instituições. A porta de entrada para a divulgação da doutrina espírita, como já nos ensinava Kardec, passa pelo entendimento da espiritualidade: “Não sendo os espíritos senão as almas dos homens, o verdadeiro ponto de partida é a existência da alma…”. É o caminho natural a ser seguido. Pesquisas sobre a comprovação de uma ‘alma’, algo que há em nós além do material, contribuem para este primeiro passo na aceitação do espiritismo também no meio acadêmico.