Correio.news

View Original

Kardec no cinema. Para todos

Por Eliana Haddad

Wagner de Assis, diretor do filme Kardec

O filme Kardec estreia nos cinemas, trazendo a história de Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869) desde o período em que atuava como educador até o momento em que descobre o espiritismo, passando a investigar os fenômenos, desvendando o mundo dos espíritos e trazendo à humanidade a codificação da doutrina espírita. Em entrevista ao Correio, o diretor Wagner conta os desafios enfrentados para realizar esse tão aguardado projeto, destacando que não se trata de um filme religioso, e sim da cinebiografia, que relata a vida de um personagem histórico que merece ser retratado e conhecido por todos.

 Como surgiu o projeto de se fazer um filme sobre Allan Kardec?

Havia duas frentes de interesse numa cinebiografia sobre Kardec. Por um lado, o Marcel Souto Maior, escrevendo um livro sobre a vida de Rivail de uma forma bem jornalística, factual, sem muita adjetivação. Dava pra ver um homem e seu tempo, suas adversidades, sua jornada de transformação. Firme, forte e um tanto inovador, sem precisar ser inédito. Ele me procurou, contando do projeto e sugerindo que eu o levasse aos cinemas. Eu estava envolvido ainda com o Nosso Lar. Fiquei impressionado e confesso que não estava pronto. Mas aceitei o desafio, meio sem saber quais caminhos iríamos percorrer.
A produtora Conspiração, uma das maiores do país, tinha em seus projetos a ideia de levar aos cinemas a história do Kardec. Havia algum esboço de roteiro. Essas duas frentes se encontraram e o projeto do filme nasceu. 

Por que a escolha do livro do Marcel Souto Maior como referência bibliográfica?
O maior mérito do livro do Marcel é contar a história tal qual ela aconteceu e deixar para o leitor entender e refletir sobre aquilo tudo. Sem induções de raciocínios. Claro que a vida de Kardec é de conhecimento de todos e está presente em outros trabalhos geniais. A inspiração do livro veio com o intuito de apenas contar a história o mais próximo possível do que entendemos como um homem e seu tempo, um homem e seus desafios, seus inimigos, sua jornada de transformação.

É um filme espírita? Que fala de espiritismo para um público específico?
Tenho sempre um momento de reflexão com relação ao título "filme espírita". Porque, se ele quer dizer um gênero de cinema, acho que não é um filme espírita, simplesmente porque não existe tal gênero. Prefiro acreditar que se trata de um filme, cujo drama é cinebiográfico e pode (e deve) ser visto por qualquer pessoa, espírita ou não. Nessa hora, o adjetivo mais cerceia do que amplia as possibilidades de um projeto.
Essa é novamente (assim como fizemos com Nosso Lar) a nossa busca — contar uma história que agrade a todos, independentemente de gênero, raça, religião. Acho que é isso que o cinema se dispõe a fazer. E o espiritismo é uma doutrina tão ampla que pode alimentar essas histórias sem precisar ser rotulado como gênero.

Qual seu objetivo ao levar para as telas a vida do codificador do espiritismo?
Amo boas histórias e elas merecem ser contadas sempre. A vida do professor Rivail é um exemplo maravilhoso que pode e deve ser sempre lido, visto e comentado. Um homem que se transforma depois dos 50 anos de idade, que transforma pessoas ao seu redor, que busca respostas de forma empírica para questões sobrenaturais. A vida dele encaixa perfeitamente na jornada arquetípica do herói, falando de uma forma mais abrangente. Isso tudo é muito atraente para quem gosta de contar histórias. Afinal, pessoas vão aos cinemas para verem boas histórias bem contadas. Só isso.

Onde foram feitas as filmagens e quais os maiores desafios enfrentados?
Filmamos em Paris e no Rio de Janeiro. O maior desafio foi retratar o século 19, numa Paris que não existe mais, nem em Paris. Uma cidade antes da reforma arquitetônica, antes de ser a cidade luz, mas um local que já respirava ciência num século tão revolucionário. Claro que também dar credibilidade para a trajetória do nosso personagem principal, mostrar as coisas certas a respeito de sua vida e convidar o público a conhecê-lo, entender o que ele faz e diz, torcer por ele, foram desafios imensos.

Como foi a escolha do elenco?
Escolher elenco é das coisas mais difíceis. Porque não tem volta! Mas costumo acreditar que certas coisas no cinema acontecem por si próprias.
Era preciso encontrar Rivail e depois Amélie. Vieram Leonardo Medeiros e Sandra Corveloni (Amélie Boudet). Depois, fomos encontrando os amigos, os inimigos e demais personagens.

Quais suas expectativas? Está preparado para enfrentar críticas?
Espero que quem conheça o Kardec se surpreenda ao ver o homem em seu momento mais humano, em sua árdua e honrosa trajetória de codificar uma verdade através de um método que ele mesmo desenvolveu. Se não estivermos prontos para críticas, melhor nem sair de casa...

Durante a execução do projeto, houve alguma descoberta?
Todo o processo criativo sempre nos traz coisas novas quando investigamos emoções, sentimentos e pensamentos de personagens com os quais vamos convivendo e aprendendo. Além disso, pudemos também entender mais dos conflitos daquele homem. Ao mesmo tempo, cinema é planejamento, produção perfeita, é roteiro bem escrito, é uma rotina intensa que demanda disciplina, disciplina, disciplina.

Vocês sentiram alguma inspiração, alguma aproximação espiritual durante a realização dos trabalhos?

Sempre imagino que qualquer trabalho em nome de algo que seja ético e moralmente edificante, que esteja de acordo com as leis divinas, estará amparado por amigos espirituais.
Certamente pedimos sempre muita proteção. Posso dizer que eu estava tão concentrado em fazer as cenas que não tinha condições de prestar atenção em mais nada. Claro que quando choramos de emoção, vendo uma atuação (como aconteceu várias vezes durante as filmagens), sabemos que há algo mágico no ar. Um dia, encontramos uma oração presa na caixa de luz de uma das locações. Uma oração escrita a mão e sem assinatura, num papel amarelado. Fizemos dela um momento de união da equipe, todos os dias. Isso mostrou que independentemente da orientação religiosa das pessoas, falar coisas positivas, orar, pensar o bem, são comportamentos universais.

O que mais o impressiona na biografia de Allan Kardec?
Sua força de transformação. O que, de certa forma, o torna um espírita perfeito, pela sua capacidade de autotransformação. Ele é exemplar, apesar de medos, receios, pesadelos que porventura tenha tido ao longo do processo. Me impressiona também a relação madura, intensa, edificante, dele com Amélie. Outra coisa é seu método: ele tinha possibilidades infinitas ao evocar os espíritos em diferentes momentos da pesquisa. Isso fez com que ele tenha sido o entrevistador mais importante da história! Que oportunidade divina!

Como será retratada no filme a participação de Amélie Boudet?
Amélie é quase outra protagonista. Que ainda não recebeu o devido mérito, por toda a sua importância nessa história. Mas espero que o filme lhe dê o devido destaque e tributo. Uma mulher que não está atrás de um grande homem, mas ao lado dele. Uma mulher forte e inteligente, sensível e maravilhosa.

Analisando a biografia de Kardec, você acredita que ainda haja muita coisa a se descobrir sobre ele?
Por um lado sim, do ponto de vista humano, emocional, dos conflitos que ele viveu. O cinema permite isso, para que possamos entender a fundo o que ele queria, o que ele sentia. Ver Kardec de pijama, por exemplo, não é algo que façamos normalmente. Mas o filme se permite entrar nessa intimidade. Ver também ele chamar a esposa de Gabi e ela o chamar de Léon é mostrar que estamos vendo uma história de amor que pouca gente pensa quando fala em sua jornada.

Em sua opinião, qual característica de sua personalidade ficou mais evidente ?
Sua humanidade. Um homem que viveu intensamente uma jornada, que pode ser inspiradora para qualquer pessoa, em qualquer idade. Além disso, um homem que descobre um 'tesouro' e precisa se doar ao máximo para compartilhar este tesouro com o mundo.

Há alguma licença poética no filme que possa dar margem à dúvida sobre a realidade da vida de Kardec?
Há sempre adaptações necessárias para que o drama possa ser bem contado. Juntamos alguns personagens, pulamos no tempo em alguns momentos. Mas nada que tire a essência de quem foi ele, do que fez.

 Qual o papel desse filme para a divulgação do espiritismo para a ciência e para a filosofia?
Acho que é um filme e pronto. O espiritismo é maior. Ele está acima de manifestações artísticas e culturais, porque está ligado às nossas verdades essenciais. De qualquer forma, é sempre bom falar e pensar em questões como: quem somos, de onde viemos e para onde vamos, sobre a vida espiritual. Não é feito pensando em divulgar o espiritismo, mas para contar uma história maravilhosa. O resto virá pelas pessoas que irão aos cinemas, que vão comentar e levar outras pessoas, que vão gostar ou não.

E sobre o futuro? Quais os próximos projetos?
Estamos em vias de finalmente conseguir viabilizar o Nosso Lar 2 - Os Mensageiros. Demorou muito mais do que imaginei, porque precisamos dos recursos corretos para fazer um filme à altura da história. E também desenvolvo a cinebiografia inédita no cinema brasileiro: As vidas de Emmanuel.

 Agora então é esperar?
Sim. Que em maio possamos realizar uma nova 'invasão organizada', a exemplo da invasão dos Espíritos no século 19, mas desta vez nos cinemas brasileiros. E que todo espírita se dedique a levar alguém que ame e gostaria muito que conhecesse Kardec. Espero que o resultado seja pura emoção.

(Artigo original publicado no Jornal Correio Fraterno)