De pai pra filha
Por Eliana Haddad
Do sonho acalentado e efetivado em 1967 com a criação de um jornal espírita, à proposta de se falar sobre espiritismo de uma forma contextualizada para um público mais abrangente, Raymundo Rodrigues Espelho, fundador do jornal e editora Correio Fraterno, e a jornalista Izabel Rodrigues Vitusso, há 13 anos à frente do projeto, analisam o passado e falam sobre os desafios atuais da divulgação espírita.
Entrevista com Raymundo Rodrigues Espelho
Seus pais já eram espíritas. Quando criança, na década de 1940, morava na zona rural de Catanduva, SP, e a família já realizava reuniões espíritas. Hoje, aos 80 anos, Raymundo Rodrigues Espelho lembra com gratidão a oportunidade que lhe foi dada de trabalhar para a divulgação do espiritismo.
Pouco antes de se casar, em janeiro de 1959, mudou-se para São Bernardo do Campo, SP. Começou a frequentar o único centro da cidade, Centro Espírita Emmanuel, onde o projeto da fundação de um lar de crianças ganhou força. Em 1960, nascia o Lar da Criança Emmanuel e anexo a ele formaram-se também o Centro Espírita Pátria do Evangelho e a editora Correio Fraterno.
Como surgiu o Correio Fraterno?
Começou numa conversa entre os espíritas, principalmente do Lar da Criança Emmanuel. Em 1967, durante a Primeira Semana Espírita de São Bernardo, começamos a cogitar sobre a possibilidade de fundarmos um jornal voltado para a divulgação espírita. O Correio Fraterno surgiu então em 3 de outubro daquele ano, em homenagem ao nascimento de Allan Kardec. Anos depois, ele daria origem à fundação da Editora Espírita Correio Fraterno do ABC. Não sei se eram planos da Espiritualidade, mas, quando jovem, eu já pensava em fundar um jornal espírita. Sentíamos a necessidade de uma maior divulgação o espiritismo.
É verdade que, quando criança, o senhor já pensava em divulgar o espiritismo?
Sim. Eu mesmo fazia manuscritos com frases de Emmanuel, psicografias de Chico Xavier, de Divaldo Franco, de Yvonne Pereira, e saía distribuindo pelas casas da vizinhança. Felizmente nasci em lar espírita e sempre tive gosto pela escrita. Mesmo novo, já sentia o quanto o espiritismo poderia ajudar as pessoas. Eu tinha aquela ansiedade de divulgar!
Como foi o início do Correio?
O jornal começou com quatro páginas e uma tiragem de mil exemplares mensais. Com o tempo, tivemos sorte por ter um dos nossos companheiros de doutrina, Maury Dotto, como uma das pessoas à frente do grande jornal da região, o Diário do Grande ABC, que imprimia gratuitamente o Correio para nós. Mas no início foi muito difícil. E vale lembrar que, como todo projeto com muitos anos de existência, o Correio Fraterno também passou por vários períodos, teve diversas equipes, que deram o melhor de si. No início, mais informativo; depois, mais crítico. Hoje os tempos são outros e o Correio também se preocupa com o público em geral, que deseja ter informações sobre o espiritismo para aplicação nos seus desafios do cotidiano.
Quem escrevia no jornal ?
Era tudo muito simples. Pedíamos artigos para quem conhecíamos no meio espírita. Eu escrevia, e também o Ismael Sgrignoli, que era diretor do Lar Emmanuel. Ele foi um grande apoiador, liderando esse movimento juntamente com o Manoel Romero, um dos pioneiros do movimento espírita de São Bernardo, e outros companheiros. Em 1959, São Bernardo só tinha uma casa espírita, a dirigida por ele, o Centro Espírita Emmanuel. Havia algumas reuniões de estudos mediúnicos e sessões espíritas em residências. Naquele tempo, a cidade era bem pequena, tinha 50 mil habitantes. Com o passar dos anos, criou-se no jornal uma verdadeira rede de apoio, da qual faziam parte Herculano Pires, Freitas Nobre, Deolindo Amorim e incontáveis outros companheiros e articulistas.
Como faziam para cobrir as despesas e como era a expedição dos exemplares?
Havia os assinantes e também vendas avulsas do jornal para alguns centros espíritas, além dos anúncios que eu mesmo ia atrás. Eram lojas, farmácias, bancos, casas de material de construção, construtoras; amizades que eu tinha. Alguns oradores de fora vinham fazer palestras na região, traziam seus livros e da venda sempre davam alguma colaboração para o jornal. Os próprios diretores do Lar Emmanuel ajudavam a mantê-lo. Quando os jornais estavam impressos, eles iam direto para nossa casa. Os endereços eram mimeografados e recortados por nós todo mês. Dobrávamos o jornal e colávamos o endereço com a cola de farinha que a Maria Elena, minha esposa, preparava. Era tudo muito primário. Quando tudo ficava pronto, colocávamos os exemplares no nosso carro e levávamos até os Correios, na única agência que havia em São Bernardo. Foi um tempo muito bom!
Como surgiu a ideia de passar a publicar livros?
Na época havia uma 'meia dúzia' de editoras espíritas. Hoje somam muito mais de cem. A divulgação do conteúdo espírita era feita mais através de jornais e também por alguns programas radiofônicos. A publicação de livros foi aos poucos ganhando força, com as obras psicografadas, principalmente pelo Chico, por Divaldo Franco, Yvonne Pereira. No final da década de 1970, iniciamos com a publicação de livros: Começamos pelo O Besouro Casca Dura, de Iracema Sapucaia. Jorge Rizzini, o seu esposo, nos trouxe em seguida a sua obra de pesquisa: Eurípedes Barsanulfo, o apóstolo da Caridade. Depois veio o A extraordinária vida de Jesus Gonçalves, do jovem escritor Eduardo Carvalho Monteiro. Da médium Dolores Bacelar logo chegou um dos nossos romances clássicos A mansão Renoir. Com o tempo, vieram Herculano Pires, Deolindo Amorim, Richard Simonetti, Wilson Garcia, Herminio Miranda, Aureliano Alves Netto e tantos outros.
Qual seu maior desejo para os próximos 50 anos do Correio?
Que o Correio Fraterno possa estar sempre ativo e vibrante, acompanhando a evolução dos tempos. Todo leitor há de ter sempre o nosso respeito. Quero estar presente, nem que seja espiritualmente, para comemorar o centenário do Correio Fraterno!
Entrevista com Izabel Regina Rodrigues Vitusso
Embora tivesse participado desde criança junto da família nos projetos do Lar da Criança Lar Emmanuel, do início do jornal e da editora, não fazia parte dos projetos profissionais de Izabel Rodrigues Vitusso trabalhar no Correio Fraterno. Formou-se em jornalismo, morou fora, em Belo Horizonte e Uberlândia, MG, atuando em outras frentes, em comunicação corporativa, deu aulas em faculdades de jornalismo, escreveu livros. Somente quando voltou, quase vinte anos depois, é que foi percebendo que a tarefa da divulgação espírita a aguardava. Abraçou o desafio da condução dos projetos e hoje sente-se parte de uma equipe muito maior, cuja responsabilidade espiritual é levar adiante ideias que não apenas informam, mas que consolam e libertam.
Como foi para você vir trabalhar no Correio Fraterno?
Os velhos planos superiores para a nossa vida... Hoje vejo que a minha grande realização profissional aconteceu aqui, dentro do projeto Correio Fraterno, o que para mim é uma grande alegria.
Como você vê o seu trabalho hoje como parte dessa história dos 50 anos?
Quando vejo o acervo do Correio Fraterno, tento entrar no pensamento de todos que trabalharam lá atrás. Embora a causa seja uma só, o momento era outro, e a forma da escrita bem diferente. Mas em todas as fases do jornal existe um conteúdo importantíssimo, um acervo raro que conta a história do movimento espírita nesses 50 anos. É bom para lembrarmos que ninguém faz nada sozinho, que somos só mais nessa grande esfera do trabalho da divulgação da doutrina. Hoje o espiritismo ganhou espaço fora da casa espírita. Ele está na internet, nas Tvs, na lista de opções de lugares onde as pessoas sabem que podem buscar socorro, num momento em que se fala tanto de crise existencial, de ansiedade e depressão. O espiritismo propõe reflexões inteligentes com enorme potencial libertador. Poder fazer parte de um projeto com esse foco só pode ser imensamente gratificante.
Você acha que o jornal está cumprindo o seu papel?
A gente acredita no trabalho que faz. Discutimos muito sobre cada projeto que vamos desenvolver, cada edição do jornal, levando em conta nossa responsabilidade em matéria de alinhamento com o pensamento de Kardec, buscando a clareza no conteúdo e o melhor entendimento para o nosso leitor. Percebemos a presença da espiritualidade de forma intensa no que fazemos. Vemos a cada edição do jornal que os assuntos vão se convergindo para um tema de maior importância para o momento. Somos uma equipe bem enxuta, mas muito entrosada e comprometida. Nos divertimos muito trabalhando!
Nossa proposta é levar de uma forma encadeada, jornalística, fatos e situações, textos para reflexão, deixando sempre uma porta aberta para que o leitor se encontre em sua caminhada.
Quem é o público do Correio?
Na história do espiritismo vemos o esforço dos pioneiros para que as ideias espíritas conquistassem o seu lugar. Meu pai sempre conta que quando eram pequenos, muitas pessoas atravessavam a calçada para não passarem na frente da casa dos espíritas. Falavam para um público muito mais reduzido, cheio de preconceitos. Hoje a pessoa vê você no metrô com um livro espírita, ela quer interagir, comentar uma experiência. Sente curiosidade sobre o mundo espiritual. E o jornal procura acompanhar esse público. A própria forma com que o jovem leitor lida com as diversas áreas do conhecimento, comparando linhas de pensamento, deixa pistas de como sensibilizar esta geração através da comunicação, o que é sempre um desafio. O que procuramos é oferecer esse conteúdo de maneira clara, afetuosa, atual, tendo claro o respeito ao direito alheio de se identificar ou não com o que lê.
E os livros? Quantos títulos já foram publicados?
Só nos últimos dez anos, cerca de 50 títulos, dentre eles, alguns relançamentos de obras que o Correio já tinha em seu catálogo.
Cada projeto de novo livro é acalentado por toda a equipe, com um carinho muito especial. Na avaliação da obra, na escolha de cada detalhe dos projetos editoriais. É um trabalho de parceria junto aos autores.
Qual o grande desafio, em termos doutrinários ao se publicar, por exemplo, um romance?
Uma das maiores preocupações é não perder de vista o senso crítico, levando em consideração a base de conhecimento doutrinário. Kardec é a essência da leitura espírita. Insubstituível. Tendo-o como base, é possível se prestar um bom trabalho para a divulgação. Os recursos da comunicação existem para serem utilizados, a fim de atender aos diversos perfis e o momento por que todos nós passamos, como leitores. Aprofundar-se nos estudos, consolar-se com a leitura de uma mensagem, deixar-se tocar pela emoção trazida por um romance. Tudo isso é bem-vindo e possível, extraindo-se o que de melhor o espiritismo tem a nos oferecer.
O que você diria para quem está iniciando o trabalho de divulgação da doutrina hoje?
Somos pequenas peças de num processo que sabemos ser muito maior e todo trabalho na seara do bem nos proporciona um sentimento enorme de plenitude e gratidão. O incentivo da espiritualidade sempre presente, o retorno de pessoas que nos apontam que alguma coisa lida de nosso trabalho fez a diferença para ela, tudo isso nos move e nos completa. Eu diria, principalmente para os jovens que vale a pena trabalhar pela divulgação.
(Artigo original publicado no Jornal Correio Fraterno)