Cosme Massi: Lógica, ciência e filosofia para melhor entender Kardec
Por Eliana Haddad
Doutor e mestre em lógica e filosofia da ciência pela Unicamp, graduado em física pela UFRJ, Cosme Massi é hoje reconhecido no meio espírita por ser um grande estudioso da ciência e da filosofia espírita. Carioca radicado em Curitiba, ele dedica grande parte de seu tempo para difundir o espiritismo não só através de livros e palestras, mas pela mídia digital. A fundação do Instituto de Pesquisas Espíritas Allan Kardec,em 2008 encabeçada por ele junto ao um grupo de estudiosos, é a base para frentes de interação, via site, com quem deseja estudar e entender a fundo o espiritismo. Ao participar em agosto em São Paulo, do Encontro da Liga dos Historiadores, Cosme Massi concedeu ao Correio Fraterno esta reflexiva entrevista:
Qual o objetivo do seu trabalho para a divulgação do espiritismo?
Explicar as obras e o pensamento de Allan Kardec. Usamos a lógica, as ciências e a filosofia como ferramentas para explicar os principais conceitos utilizados por Kardec. O espiritismo, disse Kardec, é, ao mesmo tempo, uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. A publicação de Kardec é um modelo de simplicidade e profundidade. Nosso objetivo é contribuir para evidenciar a riqueza, o rigor científico-filosófico, a coerência lógica e a atualidade dessas publicações.
Foi isso que o levou a criar o Instituto de Pesquisas Espíritas Allan Kardec e o Clube Kardec ?
Sim. Criamos o IPEAK e com um grupo de amigos, colocamos todos os textos de Kardec relacionados entre si. Neste site é possível estudar toda a produção de Kardec, inclusive nos originais franceses. Por outro lado, muitas pessoas enviam-me questões sobre a obra de Kardec, que expressam dificuldades de leitura e interpretação. Assim, resolvemos criar o Clube Kardec, um site para explicar o pensamento e a obra de Kardec, onde o estudioso conta com vídeos que explicam, inicialmente, O livro dos espíritos, com seus itens ordenadamente aprofundados e também com diversos temas filosóficos para a compreensão do pensamento de Kardec.
Em sua opinião, o espiritismo corre perigo se não lhe forem preservadas as bases?
O espiritismo, tal como formulado nas obras de Kardec, é uma genuína ciência da alma. Seus textos apresentam de forma lógica e completa os princípios fundamentais dessa ciência. O texto de Kardec é tão claro e completo que não deixa espaço para deturpações. Enquanto continuarem sendo estudados e divulgados, o espiritismo, como qualquer ciência bem formulada, não tem nada a temer. As verdades que expressa, como todas as leis naturais, são eternas e cedo ou tarde se impõem.
O que você nota de mais conflitante do espiritismo do século 19 e o de hoje?
A falta de estudos profundos e metodicamente bem conduzidos como aqueles que eram realizados na Sociedade Espírita de Paris, sob o comando de Allan Kardec. Hoje, de uma forma geral, muitas pessoas enfrentam dificuldades para estudar, ou ler e interpretar adequadamente, as obras de Kardec. Essas dificuldades são consequências da baixa qualidade da educação do país. Os nossos índices de leitura e de interpretação adequada de textos estão entre os mais baixos do mundo. A Revista Espírita, por exemplo, é pouco estudada de forma metódica e profunda.
Nem tudo o que está na Revista Espírita está nas obras da codificação. Ao estudá-la não há risco de tomarem-se suas afirmações por universais?
O conteúdo da Revista Espírita é totalmente consistente com o conteúdo das cinco obras mais conhecidas de Kardec . Kardec, no seu pequeno livro Catálogo racional das obras para se fundar uma biblioteca espírita, denomina todas as suas obras, incluindo a Revista Espírita, de obras fundamentais do espiritismo. Ele recomenda o estudo da Revista Espírita simultaneamente com o estudo das suas outras obras. Ela é fundamental para se entender com mais detalhes e profundidade vários dos princípios e dos fenômenos estudados nas outras obras. Claro que nela há textos que não se encontram nas outras obras, mas não são textos que entram em contradição com elas. Kardec não é repetitivo, quando não há necessidade de sê-lo. A Revista Espírita complementa e explica as suas outras obras e os princípios fundamentais do Espiritismo. Se não a estudarmos, corremos o risco de ter uma visão incompleta e deturpada do espiritismo.
Por que não se fala mais em magnetismo, por exemplo, se Kardec disse que as duas eram ciências irmãs?
O magnetismo, que foi investigado também por Kardec no século 19, é o estudo da ação dos Espíritos, encarnados ou desencarnados, sobre os chamados fluidos magnéticos humanos, elementos sutis e de natureza material desconhecida. Kardec, em A gênese, faz uma análise desses fluidos, mostrando como refletem as qualidades morais dos Espíritos que os manipulam. O estudo desses fluidos se relaciona diretamente com o estudo do perispírito, por isso a estreita ligação do magnetismo com o espiritismo. O magnetismo investiga uma parte do conjunto dos fenômenos espíritas estudados pelo espiritismo. Neste sentido é que se pode dizer que o magnetismo e o espiritismo são ciências irmãs. Há nas obras de Kardec importantes referências e contribuições para o estudo do magnetismo. No século 19, tais estudos eram mais comuns do que hoje, principalmente na Europa. Não estudei a razão porque são mais raros hoje. As duas grandes guerras mundiais e o progresso tecnológico têm favorecido os estudos e desenvolvimentos das ciências que se apoiam diretamente na física e na química modernas. O paradigma materialista determina, no presente, os investimentos para os estudos e pesquisas. Aguardemos o futuro.
Existe uma ciência espírita? Em que ela difere da ciência “oficial”?
Sim, a ciência contida nas obras de Kardec. A ciência espírita é a ciência que trata do Espírito como elemento independente da matéria. As chamadas ciências oficiais estudam a matéria e suas propriedades. A diferença essencial está, portanto, no objeto de estudo. Claro que as chamadas ciências humanas estudam o homem e o seu mundo mental, mas o fazem com o pressuposto de que o pensamento é uma propriedade do cérebro, não a de um Espírito imortal. Assim, os objetos de estudo são bem distintos. O estudo do Espírito, como ser independente da matéria, foi elaborado por Kardec de forma rigorosamente científica, segundo as mais modernas concepções de ciência. O espiritismo é, sem sombra de dúvidas, uma genuína ciência da alma imortal.
O espiritismo é uma ciência completa?
Nos seus princípios fundamentais, sim. O paradigma, o programa de pesquisa ou a teoria fundamental se encontram formulados nas obras de Kardec. Uma ciência é o resultado da interação harmoniosa da razão com a experiência. O desenvolvimento da ciência espírita deve ser conduzido seguindo a estrutura lógica e experimentalmente comprovada dos conceitos e princípios elaborados por Kardec e pelos Espíritos Superiores, e que se encontram claramente nessas obras. O progresso de uma ciência não pode ser confundido com a aceitação de propostas sem fundamentos e que entram em contradição com os princípios já estabelecidos e comprovados.
Há algo na teoria espírita que já tenha sido superado por outras pesquisas?
Desconheço. Tenho estudado as obras de Kardec por mais de trinta anos e até agora não fui apresentado a algum novo conhecimento espírita que possa, com fundamento racional e científico, superar o que ele apresentou nas suas diversas obras. Claro que estou falando dos conhecimentos a cerca dos objetos de estudos do espiritismo: os Espíritos, sua natureza, origem e destino, bem como suas relações com o mundo corporal. Informações que Kardec tenha utilizado das ciências oficiais de sua época podem ter sido alteradas. Mas isso não se trata de espiritismo.
A terceira revelação está completa?
Se denominarmos, como fez Kardec na obra A gênese, o espiritismo como a terceira revelação, já respondemos que o espiritismo é uma ciência completa, no que diz respeito aos seus princípios fundamentais. Mas, se a pergunta se refere à possibilidade de uma quarta revelação, não creio. Pois como nos disse o Espírito de Verdade, no capítulo VI, do Evangelho segundo o espiritismo: "Deus dirige um supremo apelo aos vossos corações por meio do espiritismo." A expressão ‘supremo apelo’ pode ser interpretada como uma indicação de que uma nova revelação seja completamente desnecessária. Sendo o espiritismo uma ciência muito bem construída e com a sublimidade de sua moral, não vejo o que poderia surgir de mais racional, convincente e consolador.
Um dos pontos mais incompreendidos é a reencarnação, tida por muitos como castigo. Por que isso acontece?
Kardec nunca deixou dúvidas sobre o que é a encarnação ou a reencarnação e seus objetivos. Muitas das perguntas que recebo refletem uma incompreensão de algum conceito ou lei proposta pelo espiritismo, decorrência da falta de estudos das obras de Kardec. A reencarnação é uma necessidade para o progresso do Espírito, não é necessariamente um castigo ou punição. Existem reencarnações que são, ao mesmo tempo, provas e expiações e que, como expiações, são consequências do mal anteriormente praticado. Mas, nem toda reencarnação é uma expiação ou uma punição. Os Espíritos Bons da Escala Espírita, que só desejam o bem, reencarnam até atingirem o estado de Espírito Puro, mas suas reencarnações não são punições, pois nenhum mal praticaram como Espíritos Bons para serem punidos. Os Espíritos Imperfeitos, ao praticarem o mal, reencarnam em situações de expiação ou punição. Arrependimento, expiação e reparação expressam ao mesmo tempo a justiça e a misericórdia de Deus. A misericórdia divina concede sempre novas oportunidades aos Espíritos Imperfeitos de repararem o mal praticado. Ninguém fica perdido no reino de Deus. Todos têm oportunidades de recomeçar e refazer um caminho mal percorrido. Nenhum mal fica impune, mas, também, todo aquele que pratica o mal terá a oportunidade de repará-lo.
Qual seria o papel das casas espíritas para a melhoria da sociedade?
Ensinar o espiritismo conforme se encontra nas obras de Kardec. O indivíduo educado segundo o espiritismo se torna um cidadão melhor, transformando para melhor a sociedade em que vive. A casa espírita deve ser antes de tudo uma escola de educação espírita. A vida em sociedade só se tornará equilibrada e feliz com a transformação moral dos seus indivíduos.
O ensino bem conduzido produz a crença e esta é a base para a prática da caridade. Só a caridade possibilita uma vida social verdadeiramente feliz, conforme observa Kardec:
"Nós reconhecemos que a base da caridade é a crença; que a falta de crença conduz ao materialismo, e o materialismo ao egoísmo." (Viagem espírita, 1862, Discurso III)
IPEAK: www.ipeak.com.br, Clube Kardec: www.clubekardec.com.br.
(Publicado no Jornal Correio Fraterno - Edição 465, set./ out. 2015)