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À procura de Deus

Por Eliana Haddad

Num exercício criativo, fiel aos escritos do seu primeiro livro espírita, Os procuradores de Deus, de 1967, o Correio Fraterno entrevista o autor Herminio C. Miranda, no intuito de registrar em forma de perguntas (de hoje) e respostas (da obra) o incrível conteúdo da pesquisa histórica do “velho escriba”, como ele se autodenominava. O livro é um guia seguro para quem busca a verdade sobre a existência de Deus, do espírito, da vida. Raridade, é atual em seu conteúdo original, apresentado em roupagem moderna e com todas as ‘escovadas’, como quis Herminio, que também se viu surpreso diante da notícia sobre a descoberta da obra num sebo, visitado por Raymundo Espelho, fundador do Correio Fraterno. Com gratidão, esta edição homenageia esse incansável pesquisador, que desencarnou aos 92 anos, em 2013, deixando uma obra necessária a todos nós, espíritas e não espíritas, com seus 42 títulos publicados em português e cinco traduzidos e comentados. Aqui estão suas reflexões em Os procuradores de Deus. Esperamos que ele também possa celebrar conosco a consolidação desse grandioso projeto.

Como surgiu esse seu primeiro livro espírita?

Escrevi numa praça, de férias, em Caxambu,MG. Trata-se de uma conversa informal acerca do problema da vida e da morte. Não me preocupou na sua elaboração o desenvolvimento de um plano muito metodizado, numa sequência rígida, pejada de citações eruditas e obscuras. Deixemos essas virtudes austeras aos sisudíssimos tratados de teologia. Estamos cansados de erudição e obscuridade. Queremos agora uma discussão franca de problemas que tão profundamente nos interessam: a majestosa equação da vida. 

Como analisar o conflito histórico entre ciência e religião?

É preciso ver onde acaba a ciência – se é que acaba – e onde começa a religião; ou se aquilo que nos parece uma linha demarcatória não resulta de mera deficiência dos métodos de observação. É preciso que se discuta tudo isso em linguagem desataviada daquilo que teologias milenares têm procurado explicar a seu modo. 

O estudo sobre a morte e sobre Deus é da alçada da ciência?

A morte tem sido através dos tempos um dos principais objetos das cogitações teológicas, desde as religiões mais primitivas até as sofisticadas discussões da moderna teologia. Nesta, tanto se especula em torno da ideia de Deus que se esquece de praticar as virtudes que levam a Ele. O que não se pode, entretanto, é admitir que o assunto seja da alçada exclusiva da religião. Não estamos ainda equipados intelectual e moralmente para uma abordagem, mesmo primária, do assunto. E acho tão perniciosa à evolução do espírito a descrença pseudocientífica, como o exagerado misticismo que atribui a Deus condições humanas. 

Muitos ainda ridicularizam a ideia da existência do espírito. Como essa obra pode auxiliar esse entendimento? 

Se o leitor estiver entre aqueles que duvidam da existência do espírito é de mais fácil recuperação. Se, não obstante, é dos que negam enfaticamente essa realidade, está com um atraso de pelo menos um século na sua formação filosófica. Para ambos há uma grande novidade a oferecer: o espírito existe de fato e não apenas como abstração filosófica para ocupar o tempo dos que escrevem tratados de metafísica e o daqueles que os leem. Aliás, a novidade é ainda mais ampla, porque não apenas ‘temos um’ espírito, senão que ‘somos’ espíritos.

Por que tanta dificuldade em se aceitar a imortalidade?

São ilusões. Apenas o corpo físico desmorona, desintegra-se e se apaga na superfície da Terra. O espírito não. Ele aqui vem como visitante, como escafandrista que veste a sua armadura para descer ao fundo do oceano, mas um dia sobe à tona, abandona o casulo e regressa à sua verdadeira condição. 

O modelo materialista seria o principal fermento do ceticismo?

Na adolescência experimentei também a doença do ceticismo. Recém-egresso de uma fase de misticismo religioso, sentia-me um homem livre de crenças e de crendices. Julgava-me um ser emancipado e também dava graças a Deus por não mais acreditar Nele. É uma curiosa emoção essa. Eu era livre para cometer qualquer deslize e fazer do meu destino o que bem entendesse. Não havia ninguém para tomar conta dos meus atos e nem eu tinha de responder por eles jamais. A morte seria o simples dobrar de uma página em branco de um livro inútil. A vida, um jogo não menos inútil e incompreensível de emoções e de canseiras, com algumas alegrias aqui e acolá. Mas o espírito que abandona uma crença religiosa, porque não mais lhe acalma os anseios e nem lhe satisfaz às especulações do intelecto, acaba por sentir-se também insatisfeito com o dar de ombros do negativismo. Quando procura respostas claras, diretas, objetivas às suas inquietações não se dá por satisfeito dentro das estreitezas do materialismo, como não se sente à vontade no acanhamento do dogmatismo religioso. 

O senhor comenta em seu livro sobre as complicações advindas dos dogmas, do inferno e dos castigos eternos. Isso nos afastou de Deus?

Poucas coisas neste mundo são tão perniciosas quanto uma ideia mal assimilada. O aspecto mais lamentável dessa doentia criação humana que é o inferno é o caráter verdadeiramente blasfemo da punição eterna. Se admitirmos a existência de um Deus justo e bom, compassivo e puro, como é que vamos conciliar a ideia de Deus com a do castigo eterno? A questão é que esse samburá teológico parece não ter fundo. A gente começa a remexer e vai retirando dele novas dúvidas e novos problemas a resolver.

Com sua vasta experiência em reuniões mediúnicas, tem observado esses enganos nas histórias espirituais?

O católico e o protestante, cumpridores de suas obrigações religiosas, sofrem tremendas decepções ao morrer, porque não encontram do ‘lado de lá’ as instituições e a acolhida que lhes foram anunciadas. Como é que sabemos disso? É fácil. Basta ouvir os que já se foram para lá.** 

Outro ponto interessante é sua análise sobre a condição humana de Jesus. Pode nos falar a respeito?

Não se pode deixar de observar na obra de Jesus indícios dos mais evidentes da sua inegável condição humana. Nas suas irritações, no seu temor, nas suas angústias, em certas mudanças de atitude. Às vezes se aborrece e se impacienta com o que ouve ou presencia. Numa das passagens, repreende asperamente a Pedro, por lhe ter assegurado que as desgraças que anunciou não chegariam a ocorrer. Aos escribas e fariseus são constantes as suas censuras, chamando-os de hipócritas, geração de víboras. Outro gesto de incontida irritação é a cena de explosão com os mercadores. A cena da expulsão – a ser legítima – só pode ser atribuída a um momento de profunda irritação. Dos seus temores e angústias não há passagem mais eloquente do que o drama de Getsemani, onde implora ao Pai que se estivesse na vontade dele, Pai, que o poupasse ao tormento que pressente. Também a cena da última ceia tem uns laivos sombrios de melancolia e apreensão.

E sobre a pesquisa científica com relação ao espírito. Afinal, já não existem essas provas?

Queremos a prova da maneira inadequada, à nossa maneira, sem cogitar de que para cada sistema de fenômenos há um conjunto específico de testes e provas. Quando se trata, porém, da existência do espírito, nada disso se aplica. Queremos ver essa ‘coisa’, encerrada numa jaula, sob as lentes de um microscópio eletrônico, no fundo de uma proveta. Queremos que ele faça para nós algumas mágicas, nos deixe examinar suas impressões digitais, nos mostre a língua, deixe-se pesar e medir pelos nossos toscos e ridículos instrumentos. Não adianta que homens da mais elevada reputação pessoal, científica e intelectual, tenham já nos assegurado a existência do espírito. O fenômeno é realmente de delicada natureza e só ocorre mediante determinadas condições, como qualquer outro fenômeno natural. 

E sobre a justificativa de que tudo não passa de simples resposta fisiológica?

Se o fenômeno resulta de uma simples operação fisiológica, por que não a pode executar igualmente bem um cadáver? Ali estão as mesmas células, os mesmos órgãos, os mesmos sistemas. Ah!, mas falta a vida, dirá o cético. É verdade, falta a vida e o que será essa coisa a que chamamos vida? 

Qual o papel do espiritismo nessa caminhada do conhecimento?

A história da humanidade registra a eclosão de muitas crenças espiritualistas. Infelizmente, porém, foram ‘crenças’ e não um conjunto de fatos que a inteligência pudesse tomar para exame e a razão aceitar sem degradar-se e sem fazer concessões. Provavelmente impacientados ante a cegueira espiritual do homem, os próprios espíritos desencadearam um movimento destinado a revelar certas verdades singelas e naturais que até então se achavam encobertas pelo véu do mistério.

Se essas informações já chegaram até nós, por que ainda há tanta resistência em se aceitar a vida espiritual?

Fatos sustentam na parte experimental um majestoso edifício filosófico, que pouco a pouco foi-se revelando aos olhos daqueles que há mais de um século vêm estudando o fenômeno com os "olhos de ver" de que falava o Cristo. Fora da literatura espírita há também trabalhos sérios de autores aos quais não assentam os rótulos costumeiros de leviandade, ingenuidade ou partidarismo. O leitor interessado busque Lodge, Conan Doyle, William Barrett, Aksakof, Ernesto Bozzano, Camille Flammarion, Gustave Geley, Epes Sargent – a escolha é ampla. Deixo à margem os que, não menos dignos que esses, nem menos brilhantes, inclinaram-se desde o início pela chamada hipótese espírita: Léon Denis, Paul Gibier, Gabriel Delanne. Também não pretendo impingir Kardec a ninguém. O leitor irá a ele quando sentir que deve e precisa da sua meridiana clareza expositiva e do seu lúcido raciocínio lógico. Cabe a você decidir. Minha função aqui não é fazer proselitismo, pois entendo que conceituação doutrinária é questão de maturidade. 

Seria uma questão de dar tempo ao aprendizado da vida?

A verdade é que todos têm idênticas oportunidades de aprendizado e evolução. A escola da vida está igualmente aberta a todos nós, em todos os graus, desde o jardim da infância até os mais avançados cursos universitários. Caminhamos espiritualmente à medida que vamos sendo promovidos. Às vezes, repetimos determinadas séries, especialmente nas mais elementares, porque ao alcançarmos as superiores já temos mais desenvolvimento e senso de responsabilidade. De outras, simplesmente paramos, indiferentes ao fantástico ritmo evolutivo que vibra por todo o Universo à nossa volta. Jamais recuamos, porém. 

O que dizer para quem não se convence de que a vida continua?

Você terá a sua prova definitiva, irrefutável, com a sua própria morte. (...) O espírito existe, preexiste e sobrevive.

(*) Respostas transcritas do livro Os procuradores de Deus, reeditado pela Correio Fraterno.

(**) Leia mais nos livros da coleção “As histórias que os espíritos contaram” – A dama da noite, O exilado, A irmã do vizir e As mãos de minha irmã (Ed. Correio Fraterno).

(Publicado no Jornal Correio Fraterno - Edição 464, jul./ago. 2015).