Fernando Pessoa: médium ou esquizofrênico?
Por Mariana Sartor
Fernando Pessoa, português de Lisboa, teve uma infância transtornada pela dita “loucura” da avó, que, na verdade, era médium, e pelas perdas do pai e do irmão, interessando-se por ciências místicas como os Rosa-Cruzes, numerologia e a astrologia. Porém, seu conhecimento mais profundo sobre a espiritualidade teve início ao traduzir obras teosóficas.
Já aos 6 anos de idade, deu vida a um amigo imaginário, o Chevalier de Pas, de quem recebia cartas. Este seria então, o primeiro dos 72 heterônimos que Pessoa criaria em vida, cada um com biografia totalmente diversa, detalhada e condizente com suas produções literárias.
Pela perplexidade que o fenômeno da heteronímia pessoana nos causa, houve quem o considerasse esquizofrênico, no entanto, como o próprio poeta assume, em 1916, em carta a sua tia Anica, médium, tratava-se de mediunidade.
Católico por criação, Pessoa já havia questionado sua própria religiosidade, por não aceitar alguns preceitos da igreja católica. Neste espírito, o poeta enviou, aos 19 anos, em 1907, uma carta ao pároco da freguesia, contestando o fato de ter sido batizado quando “ainda ente irracional”, o que o obrigou “a fazer parte de uma associação demasiado humana com as teorias da qual o seu raciocínio mais viril talvez não” quisesse “concordar”.
Dotado de inteligência extraordinária, com crises depressivas, sonhador incansável, escolheu a escrita ao sucesso financeiro, preferiu sua obra ao matrimônio. Nos restaurantes e tabacarias, o poeta, dados a bebidas e café, passava horas dedicando-se à literatura, sentado às mesinhas.
E foi assim que surgiram Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, os conhecidos heterônimos cujas obras poéticas são admiradas no mundo inteiro.
O primeiro morava no campo com sua tia, tinha completo apenas o primário e pregava a aprendizagem do mundo por meio dos sentidos em vez do uso da razão, como expressa nos versos do poema V d´O guardador de rebanhos:
“O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.”
Os outros dois heterônimos foram seguidores de Caeiro, porém, bem divergentes em estilo e raciocínio. Ricardo Reis era um médico, adepto da estética greco-romana e admirador da mitologia. Os temas que permeiam sua obra são clássicos do Arcadismo (escola literária do séc. 18), como a passagem do tempo e a fugacidade da vida. São deste defensor do aproveitamento de cada dia os versos:
“Ao longe, os montes têm a neve ao sol...
Para ser grande, sê inteiro.
Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo...”
Já o terceiro, formado em engenharia, começou sua poética adotando o estilo futurista, tratando das sensações experimentadas pelo homem no mundo moderno das tecnologias. Numa segunda fase, intelectualmente mais maduro, Álvaro de Campos compõe poemas mais pessimistas e angustiados. Este heterônimo é quem assina o famoso “Poema em linha reta”:
“Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse não uma violência, mas uma cobardia!”
Os 49 poemas "d´O guardador de rebanhos", assinado por Caeiro, lhe foram inspirados de uma só vez, na tarde de 8 de março de 1914. O processo aconteceu de repente, segundo Pessoa, impetuosamente surgindo-lhe um novo indivíduo. Num jato, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda.
Muitos estudiosos afirmam que os heterônimos pessoanos são, como os outros, personalidades, arquitetadas ou descobertas pelo poeta dentro do seu eu, ou que cada um deles corresponderia a uma visão de mundo diferente, ou seja ângulos diferentes pelos quais o poeta explora a realidade. Porém, após a “criação” repentina de Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, Fernando Pessoa dá, mais uma vez, indícios de que o que ocorrera fora psicografia, ou como o poeta dizia, escrita automática: “ em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa".
O poeta que já havia previsto que não seria reconhecido em vida, por saber que lançava uma estética poética inovadora para a qual não havia público, e que vivera modestamente, hoje é muito admirado pela superioridade de seu texto, sendo considerado, ao lado de Camões, um dos maiores poetas portugueses.
Apesar de toda a obra conhecida ser suficiente para se ter certeza do mérito e da sublimidade intelectual de Pessoa, há muito mais a ser descoberto. Em 2005, completaram-se 70 anos que o poeta desencarnou. Portanto, pela legislação, sua obra não publicada, entra em domínio público, tendo a família perdido os direitos autorais. Assim, o famoso baú que contém cerca de 25 mil papéis com anotações, poemas e reflexões tem sido explorado por diversos especialistas, que já estão publicando informações inéditas sobre a vida e obra do autor.
“Não meu. Não meu é quanto escrevo, a quem devo?
De quem sou arauto nato?
Porque enganado
Julguei ser eu o que era meu
Que outro mo deu?”
E ainda: “Não sou eu quem escrevo. Eu sou a tela
E oculta mão alguém coloca em mim.”
(...)
“Vivem em nós inúmeros
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa e sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.”
“Serei eu, porque nada é impossível,
vários trazidos de outros mundos, e
No mesmo ponto espacial sensível
Que sou eu, sendo eu por estar aqui?”
(...)”
Carta à tia Anica
“O fato é o seguinte. Aí por fins de Março (se não me engano) comecei a ser médium. Imagine! Eu, que (como deve recordar-se) era um elemento atrasador nas sessões semi-espíritas que fazíamos, comecei, de repente, com a escrita automática. Estava uma vez em casa, de noite, vindo da Brasileira, quando, senti vontade de, literalmente, pegar numa pena e pô-la sobre o papel. É claro que depois é que dei por o fato de que tinha esse impulso. No momento, não reparei no fato, tomei-o como o fato, natural em quem está distraído, de pegar numa pena para fazer rabiscos. Nessa primeira sessão comecei por a assinatura (bem conhecida de mim) ‘Manuel Gualdino da Cunha’. Eu nem longe estava pensando em meu tio Cunha.
(...) estou desenvolvendo qualidades não só de médium escrevente mas também, de médium vidente. Começo a ter aquilo a que os ocultistas chamam a ‘visão astral’ e também a chamada ‘visão etérica’. Tudo isto está muito em princípio, mas não admite dúvidas.
(...) E há – o que é uma sensação muito curiosa – por vezes a sentir-me de repente pertença de qualquer outra coisa. O meu braço direito, por exemplo, começa a ser-me levantado no ar sem eu querer. (É claro que posso resistir, mas o fato é que não o quis levantar nessa ocasião).
(...) Há mais curiosidade do que susto, ainda que haja às vezes coisas que metem certo respeito, como quando, várias vezes, olhando para o espelho, a minha cara desaparece e me surge uma face de homem de barbas ou um outro qualquer (são quatro, ao todo, os que assim aparecem).
(...) Não sei se realmente julgará que estou doido. Creio que não. Estas coisas são anormais, sim, mas não antinaturais.”
Bibliografia
Isabel M. França. O espiritualismo pessoano.
Frederico Barbosa. O enigma em Pessoa.
Amélia Pinto Pais. Imagens de Deus na Literatura Portuguesa nos séc. XIX e XX.
Lúcia Milani Piantino. Uma heteronímia na mente cósmica universal. http://www.secrel.com.br/jpoesia/pessoa.html
(Artigo original publicado no Jornal Correio Fraterno)