Correio.news

View Original

Eu não tinha com quem conversar

Por Neimer Masotti   

Relembrando momentos importantes que desfrutou ao lado do Chico Xavier, Neimer Masotti conclui que muitas experiências que desfrutamos ao lado de expoentes da doutrina não devem ser de uso pessoal, mas garimpadas e divulgadas como joias produzidas para aproveitamento geral. 

Quanto mais nos aprofundamos na avaliação da atuação de Chico Xavier no movimento espírita, mais percebemos a sua importância.


A frase que ouvi dele, certa vez num almoço íntimo,"eu não tinha com quem conversar sobre o assunto", me fez pensar no estágio de evolução e conhecimento que se encontravam os espíritas, quando Chico iniciou suas atividades.


Com o objetivo de explicar a presença da Heigorina Cunha, em visita naquele dia, Chico começou dizendo: "Quando jovem ainda, eu comecei a ver, em minhas visitas espirituais, prédios, ruas, veículos, muita gente andando, enfim, cidade. Tudo isso no espaço. Era tudo uma novidade para mim. Eu precisava conversar com alguém sobre o que via, queria trocar ideias. Mas não tinha ninguém entre as pessoas que eu conhecia, em condições de possibilitar um diálogo mais esclarecedor".

Percebemos naquele instante que era muito maior que imaginávamos a importância de Chico para o espiritismo. Ele estava começando pelo começo.

É certo que Kardec começou 70/80 anos antes, fornecendo todas as explicações e orientações, mas coube ao Chico, através da exemplificação, nos trazer demonstrações do efetivo funcionamento das leis. Mesmo os espíritas mais instruídos devem ter tido dificuldade de acolher as indicações daquele jovem, que não tinha tradição social e cultural e emergia de ambientes humildes.

Percebi a sensação de isolamento que aquele jovem devia ter sentido. As constatações por ele apresentadas fugiam completamente ao rotineiro, ao usual, ao conhecido. Eram de grande importância e estavam depositadas exclusivamente nos ombros valorosos desse jovem.

Continuou Chico falando "Quem me tranquilizou foi o Emmanuel, informando que eu ficaria tão somente com a parte descritiva do Nosso Lar. Um casal de tchecoslovacos se encarregaria dos desenhos, plantas-baixas, etc. Mas esse casal nunca apareceu."

Ficou fácil avaliar porque o casal nunca apareceu. Seria necessária muita coragem para publicar no primeiro quartel do século passado, uma planta de uma cidade espiritual.

A sensação de isolamento e angústia do médium Chico Xavier só não foi maior tão somente diante da presença efetiva de Emmanuel.

Não é à toa que Emmanuel recomendava 'disciplina, disciplina, disciplina'. Precisava manter o médium firme no trabalho sem que se assustasse com a envergadura da empreitada a se realizar.

Chico continuou falando sobre a cidade de Nosso Lar, tentando despertar a nossa atenção para aspectos como a elevada altura da torre pontiaguda do edifício da governadoria, citando-a em metros, cujo número não anotamos. Destacou o longo mandato (para nós) do governador, há mais de 140 anos da governadoria da cidade. Ele buscava consolidar as informações.

Em seguida, esclareceu que Heigorina vinha desenhando com perfeição a cidade espiritual. Disse que a planta do Nosso Lar por ela desenhada era equivalente à da cidade-piloto. Porém a cidade havia expandido substancialmente em função da quantidade de espíritos, que pela divulgação da colônia, buscavam-na para nela se instalar. A médium checava suas observações com ele.

Àquela altura, já havia saído o livro de Heigorina Cunha, Cidade no além e estava sendo preparado o livro Imagens do além, que seria publicado cinco anos depois.

Trocando impressões sobre as visões de Heigorina, Chico virou-se para ela e comentou que a clave de sol que ela via como sendo uma única grande no piso da entrada do Palácio da Música, eram, na realidade, várias claves de sol pequenas. Isso nós ouvimos. A conversa continuou em nível mais acessível, dando-nos tempo para nos recompor do impacto inicial.

Conversamos depois sobre Ismael, sobre a viagem que Chico e Waldo fizeram   a Ponta Porã-MS, com passagem em Dourados-MS onde, aproveitando uma demorada parada no aeroporto, foram à cidade e surpreenderam um dirigente de Centro trabalhando na construção de sua instituição. Waldo perguntou-lhe se ele possuía livros. Este respondeu que tinha uns livros espíritas no caixote. Waldo perguntou também quem era o menino que estava no quintal. O homem disse que se tratava de um índio enjeitado pela tribo, que ele criava. Achei o comentário sem grande significado, até que, analisado-o, entendi-o como uma orientação: quando viajar, visite outro centro espírita. Quem constrói o Centro é o próprio espírita. Sempre se tem uma biblioteca, ainda que seja um caixote. Sempre se tem assistência social, ainda que seja a um menino.

No dia seguinte, fomos a Sacramento, participar do Culto iniciado por Eurípedes Barsanulfo em outubro de 1904, realizado até hoje todos os dias às 9 horas da manhã. Encontrei a Heigorina meditativa, diferente de como estávamos habituados a encontrá-la. Foi quando ela nos perguntou: "O que queria dizer o Chico com a recomendação para atentar para a cruz? Eu cresci dentro do espiritismo e não sou chegada à cruz". Heigorina fazia referência à observação que Chico lhe fizera no dia anterior. Respondi-lhe que não seria eu que iria interpretar uma conversa do Chico com ela. Isso era coisa de gente grande. Na verdade, eu não tinha ouvido essa parte da conversa.

Em contato recente, Heigorina nos surpreendeu novamente com outra pergunta, o que veio trazer luz sobre o assunto. "Você se lembra da vibração maravilhosa que se formou quando Chico fez a sugestão para eu atentar para a cruz?"

Era evidente que eu não me lembrava. Mas aí entendi porque não a tinha ouvido.

Era oportuno que o comentário sobre a clave de sol fosse ouvido, como num testemunho não apenas do acompanhamento, mas da participação do Chico na elaboração da obra.

Porém não convinha que a conversa sobre a cruz fosse perturbada com a participação de pessoas não comprometidas nessa atividade. Já havia a resistência da própria Heigorina a vencer. Acredito que isso tenha levado os espíritos a elevar o nível espiritual da conversação de forma que somente os dois participavam. Quem não estava nessa faixa vibratória, não ouvia. Ficamos de fora.

Quantas vezes isso terá acontecido com tantos de nós...

A apresentação da cruz como descrita e desenhada no livro justifica o cuidado dos espíritos, autores espirituais que guiam a autora material, afastando as resistências pessoais. Chico disse: "Ela é linda!".

A leitura destes dois livros, muito interessantes da Heigorina nos levou a pedir, em outra ocasião, esclarecimentos do Chico sobre as esferas espirituais concêntricas do planeta, tal como a diferença de evolução de cada esfera, sobre a existência de alguma relação entre os habitantes de esferas diferentes, a correlação com esfera de outros planetas, etc.

Estas esferas estão desenhadas nas últimas páginas de ambos os livros.

Entendíamos, na ocasião, que os fatos e assuntos que presenciamos eram resultado de simples acaso, para ser aproveitado em nosso enriquecimento moral e espiritual. Pensamos somente em nós mesmos.

Hoje entendemos que não devemos mantê-los para nosso uso exclusivo. Outras pessoas tiveram diálogos de alta importância, os quais permanecem restritos para uso pessoal. Muitos deles seriam de aproveitamento geral.

Poderíamos fazer um exame do conteúdo de nossos cofres e colocar para uso comum joias produzidas por Chico Xavier em sua profícua estada entre nós.

(Texto publicado no jornal Correio Fraterno - edição 400 -novembro/dezembro 2004)