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Francisco Cândido Xavier: além da mediunidade

Por Eliana Haddad

Os fatos relacionados à mediunidade de Chico Xavier já foram muito analisados, pensados e repensados. No meio espírita, na imprensa e nos bancos acadêmicos também não é novidade sua vida de lutas e de incansável amor ao bem comum, sendo seus exemplos de humildade citados como lembranças concretas de sentimentos elevados de verdadeira caridade.

Discreto e atuante, manso e corajoso, paciente e determinado, características que só a sabedoria é capaz de conciliar, Francisco Cândido Xavier será homenageado pelo centenário de seu nascimento no ano que vem. Quase sete anos após sua partida física da Terra– em 30 de junho de 2002 – quando milhões de brasileiros festejavam o pentacampeonato na Copa do Mundo de futebol, as histórias de Chico Xavier continuam a ser contadas e multiplicadas. Livros e editoriais diversos demonstram a importância de sua presença amorosa e lúcida, em marcas indeléveis dos surpreendentes exemplos em 74 anos de atividade mediúnica.

Chico Xavier conquistou o respeito e a admiração numa esfera pública, tornando-se figura marcante e querida não só dos espíritas, nem somente dos brasileiros. Sua popularidade atravessou fronteiras e poucos conseguem separar o mito do homem, as histórias do médium Chico Xavier e as experiências e desafios de Francisco Cândido – o menino pobre, do interior de Minas, nascido em 2 de abril de 1910, filho de pais analfabetos, que tendo cursado apenas a escola primária tornou-se uma espécie de herói popular, um líder espiritual conhecido mundialmente, que psicografou 418 títulos, alguns dos quais verdadeiros best sellers, reunindo um total de mais de 25 milhões de exemplares vendidos em vários idiomas. A renda dos livros foi doada, em cartório, a instituições de caridade. “Eu não escrevi livro nenhum. ‘Eles’ escreveram. Os livros não me pertencem”, sempre assegurava. No universo da mediunidade, Chico considerava-se mesmo o mais simples e reles dos instrumentos, sequer porta-voz dos Espíritos, mas “uma besta encarregada de transportar seus documentos”.

Recentemente, a descoberta de um velho caderno de anotações particulares acabou revelando um pouco mais do homem Chico, um Francisco Cândido criador de sua própria obra, demonstrando nas entrelinhas pequenos detalhes de seu universo cultural e emocional, particularidades que retratam sua sensibilidade pela poesia, a admiração pela literatura e a preocupação com temas comuns aos conflitos e sonhos humanos. Saliente-se até mesmo o seu senso de humor, alegria e despojamento na seleção de algumas anedotas.

O caderno acabou sendo entregue por Geraldo Leão, vizinho de Chico em Pedro Leopoldo, à pesquisadora Magali Oliveira Fernandes, quando preparava sua tese de doutorado sobre Chico Xavier para a Pontifícia Universidade Católica (PUC), em São Paulo, cujo trabalho resultou na publicação do livro Chico Xavier – um herói brasileiro no universo da edição popular  (Ed.Annablume), obra que traz no final da edição a reprodução das 34 páginas resgatadas, com seus textos e imagens, “um objeto de fundamental importância, como registro de vivência pessoal e repertório de leitura... uma inclinação ímpar para o saber”.

Embora Chico tivesse utilizado como suporte para sua produção folhas com anotações contábeis de 1924, a data da execução de tudo isso, entretanto, é um enigma. A edição do caderno é uma espécie de diário em forma de almanaque, elaborado à base de cola e tesoura, como se Chico editasse um livro só seu, uma verdadeira amostra do universo de relação que mantinha com a própria vida e da sua paixão e interesse pela arte, história e literatura.

Simples e ao mesmo tempo estética e editorialmente arranjado, o caderno apresenta colagens de folhetos e recortes de jornais e revistas, anotações sobre temas diversos, fotos e registros. Tudo reunido com capricho em uma montagem artesanal bastante interessante, com comentários e citações de cerca de 200 nomes, entre jornalistas, poetas, escritores de literatura, artistas plásticos e ilustradores. A pergunta que fica é a seguinte: Teria Chico produzido somente esse caderno? Onde estariam os outros?

A própria pesquisadora lembra que, na introdução de Parnaso do além-túmulo, lançado em 1932, Chico revela aos leitores seu desejo desde menino de ler e estudar literatura, o que não lhe havia sido possível, pois mal conseguira completar as lições da escola, por ter que trabalhar desde criança. Apesar de ter frequentado apenas o curso primário, continuou estudando em casa, um ambiente doméstico repleto de interdições, onde mantinha algumas obras, colecionava revistas e folhetos, alimentando seu sonho. “Estudei o que pude, mas meu pai era completamente avesso à minha vocação para as letras e muitas vezes tive o desprazer de ver os meus livros e revistas queimados”, contou. Estariam também seus cadernos entre eles?

A verdade é que a falta de recursos financeiros não impediu Chico de buscar soluções próprias para atingir seus objetivos com o saber, passando então a elaborar livros artesanais. Criava inclusive capas para eles, autografava-os e os presenteava aos amigos.

“Suponho que sejam inúmeras as possibilidades de leitura, de investigação e, também, de interpretação desse caderno de Chico Xavier”, comenta Magali, que pretendeu apontar no estudo “não somente a grandeza desse universo de textos e imagens, como a documentação de uma edição de idéias, nos bastidores da psicografia”.

(Artigo original publicado no Jornal Correio Fraterno)