O emprego de Antoninho
Por Álvaro Basile Portughesi
Nos idos de 1970 eu, casado, já possuía três filhos e da pequena alfaiataria retirava recursos para o sustento da casa, cuja moradia se limitava a um quarto, cozinha, uma lavanderia, situada na parte externa, e um poço de água, que era explorado pela famosa bomba pistão da época.
Despertei naquela manhã de terça-feira envolvido por um entusiasmo inexplicável, como se tivesse recebido um aconchego amigo dos irmãos espirituais, enquanto meu corpo repousava.
As crianças dormiam. Tomei café, dei um beijo na minha Rita, sentei no Dauphine e, em poucos minutos, estava lá eu, na minha máquina de costura, presente que havia ganhado dos meus avós.
Tentava ainda adivinhar a razão de tamanho bem-estar, quando entrou um menino que aparentava 11 anos me perguntando se eu era o Seu Álvaro, frequentador do centro espírita.
Respondi que sim e ele, após me fitar esperançoso, disse sem rodeios:
— Chegamos eu e minha mãe, minhas irmãs, de Caraguatatuba faz alguns dias. Lá a chuva foi tão forte que praticamente arrasou a cidade, e nós, que perdemos tudo. Viemos buscar abrigo em São Paulo, mas estamos morando numa cocheira, onde chove muito...
Enquanto prestava atenção nos olhinhos brilhantes daquele menino, voltei a mente para os recursos que conseguimos durante a Campanha do Quilo e pensei que aquele material arrecadado pudesse ajudar a pequena família infortunada, porém confesso que me surpreendi quando Antoninho disse:
— Então, eu vim pedir ao senhor para que me arrume um emprego, pois eu preciso comprar uma casa que abrigue minha mãe e minhas duas irmãs.
Desconcertado, fiquei olhando para o magro menino sem saber o que dizer. Não sei se estava buscando um tempo para me refazer do inesperado, ao solicitar ao garoto para que me procurasse no dia seguinte.
Ao fim do expediente, retornei à minha casa, e quando me encontrava na lavanderia junto ao tanque, me limitei a olhar para a lata de graxa que era utilizada para lubrificar a bomba do poço, e me ocorreu uma ideia...
Me vali de uma pequena espátula e a fixei na ponta de um cabo de vassoura e assim que encerrei essa etapa, tratei de limpar um pincel que amarrei na extremidade de uma velha vara de pescar. Juntei esses apetrechos à lata de graxa e os coloquei no porta-malas do Dalphine.
Na manhã seguinte, levei e os coloquei no interior da alfaiataria, para caso Antoninho resolvesse voltar, o que não demorou:
— Bom dia, Seu Álvaro! E, então, o senhor arrumou o meu emprego?
— Antoninho, não se trata propriamente de um emprego, mas não deixa de ser um trabalho honroso...
Mostrei a ele as ferramentas que eu havia preparado no dia anterior e expliquei em detalhes quais seriam as suas funções. Sugeri para que em visitas aos armazéns se prontificasse a engraxar as portas por um determinado valor.
— E quanto eu cobro?
— Você pode cobrar quinhentos contos por porta engraxada, mas tome cuidado para não fazer uso de bebidas ou cigarros, pois você encontrará eventualmente alguém que possa oferecer a você.
Costurei uma pequena sacola de pano onde coloquei a lata de graxa, e o Antoninho foi à luta todo feliz.
O dia transcorria normalmente e no fim da tarde Antoninho entrou na alfaiataria, dizendo enquanto mostrava os bolsinhos refertos:
— Eu vim dividir a féria com o senhor!
— Parece que deu bom resultado — exclamei. — Mas coloque o dinheiro sobre o balcão para que possamos contá-lo.
Contei e disse admirado:
— Quatorze contos e quinhentos! Você engraxou vinte e nove portas?
— Sim, Seu Álvaro. Alguns não queriam, mas assim que eu contava a minha situação, eles diziam: Ô raios, pode engaxare...
Antoninho, esse dinheiro é todo seu e de sua família, você não tem que dividi-lo comigo.
O menino me beijou e se foi.
Aproximadamente dezoito meses se passaram, até que uma jovem senhora entrou no meu pequeno estabelecimento e disse, após a saudação.
— Sou mãe de Antoninho e vim agradecê-lo pelo emprego que o senhor arrumou para ele!
— Muito prazer, minha senhora, mas eu não arrumei um emprego para o menino. Fiz a ele apenas uma sugestão de trabalho que viesse aliviar um pouco as carências da família.
— Mas o senhor não vai nos negar a alegria de tomar um café com a gente! Dê-me essa honra!
Fechei a porta da alfaiataria, convidei a senhora para entrar no automóvel e segui na direção indicada.
Não demorou a entrarmos numa casa simples, pintada em caiação e cercada de arame farpado. O piso todo em vermelhão brilhava, cheirando limpeza. Convidado a sentar, a senhora afirmou que iria passar um café. Vocês não imaginam o aroma delicioso que invadiu o ambiente e, então, a mulher retirou o bolo de fubá que ela afirmou ter feito em minha homenagem.
Não me contive e perguntei se o aluguel que eles pagavam por aquela moradia era muito elevado, ao que ela respondeu:
— Não, Seu Álvaro, esta casa foi construída com o dinheiro ganho no serviço que o senhor arrumou para o Antoninho...
Quando ouvi o relato do menino sobre a enchente em Caraguatatuba em 1967 nem fui checar. Hoje procurei no Google e encontrei: Enchentes e deslizamentos de terra em Caraguatatuba em março de 1967.
Adaptado do livro Aconteceu no meu caminho, Álvaro Basile Portughesi - ed. Clareon, 2017.
(Artigo original publicado no Jornal Correio Fraterno)